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O homem de cabeça de papelão - João do Rio

O homem de cabeça de papelão - João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não.

Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

O homem de cabeça de papelão - João do Rio |||||Cardboard||| El|||||cartón||| The man with the cardboard head - João do Rio El hombre de la cabeza de cartón - João do Rio ダンボール頭の男 - ジョアン・ド・リオ Człowiek z tekturową głową - João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. In the country they called the Sun, despite the fact that it rained at times for entire weeks, there lived a man named Antenor. Não era príncipe. He was not a prince. Nem deputado. |Ni diputado. No deputy. Nem rico. Not even rich. Nem jornalista. Not a journalist. Absolutamente sem importância social. |||social Absolutely of no social importance.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. ||||||||||legendary||||||||||| ||||||||||legendarios|||||||sorprendente||||prácticas The Country of the Sun, like all legendary countries in general, was the most common, the least surprising in ideas and practices. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. ||||||||||||||||||||||||||||nieszczęście||| |habitantes|afluían|||||||||jardines|||||||||||||||||||| The inhabitants all flocked to the capital, made up of squares, streets, gardens and avenues, and took all places and all the possibilities of life for those who, by chance, were from the capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Sie waren also Bettler und Schmarotzer, die einzige Möglichkeit, konkurrenzlos zu leben, auch wenn es viele Einschränkungen für Schmarotzer gab. So these were beggars and parasites, the only way of life without competition, even with many restrictions on parasitism. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. In der Hauptstadt, im Zentrum, stiegen die Gebäude um einige Stockwerke und das Vermögen ihrer Besitzer; in den Vororten waren sie nicht höher als ein Stockwerk, was die Besitzer auch nicht reicher machte. The capital's buildings, in the center, raised a few floors and the owners' fortunes, while in the suburbs they were no more than one floor high, which didn't make the owners any richer either. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. ||||||||||||||||newspapers||||||conservative people|||||||||boredom| There were thousands of cars rushing through the streets, killing people to kill time, tired cabarets, newspapers, tramways, nationalist parties, the absence of conservatives, the stock exchange, the government, fashion, and total boredom. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. ||||||||aspire to be|||||||city|||| Kurz gesagt, alles, was eine Fantasiestadt anstreben kann, um wie eine Großstadt mit amerikanischen Ansprüchen zu sein. In short, everything a fantasy city can aspire to in order to be like a big city with American pretensions. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Und die Menschen, die sie bewohnten, hielten sich nicht nur für intelligent, sondern besaßen auch einen immensen gesunden Menschenverstand. And the people who lived there thought they were not only intelligent, but also possessed immense common sense. Bom senso! Gesunder Menschenverstand! Common sense! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso! If it weren't the capital of the Land of the Sun, the city would be the capital of Good Sense!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Genau aus diesem Grund war Antenor, obwohl er keinerlei Bedeutung hatte, eine wenig beachtete Ausnahme. Precisely for this reason, Antenor, despite not being important at all, was a disliked exception. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos. Dieser Junge, der Sohn einer guten Familie (so gut, dass er sogar Gefühle hatte), hatte immer gegen die Normen seiner Mitbürger gehandelt. This boy, the son of a good family (so good that he even had feelings), had always acted contrary to the norm of his fellow citizens.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Seit er ein Junge war, entdeckte seine ehrbare Mutter einen schrecklichen Fehler an ihm: Antenor sagte nur die Wahrheit. Ever since he was a boy, his respectable mother discovered a horrible flaw in him: Antenor only told the truth. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Nicht Ihre Wahrheit, die nützliche Wahrheit, sondern die wirkliche Wahrheit. Not your truth, the useful truth, but the real truth. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Erschrocken dachte die Frau darüber nach, etwas zu unternehmen. Alarmed, the dignified lady thought about taking action. Foi-lhe impossível. Das war unmöglich. It was impossible. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. ||||||||||||||||||||||others Antenor war anders in der Art, wie er aß, wie er sich kleidete, wie er ging und wie er andere ansprach. Antenor was different in the way he ate, the way he dressed, the way he walked and the way he addressed others. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. ||shorts|||||||||||||||||||||| Solange er kurze Hosen trug, hielten ihn die Freunde der Familie für ein Enfant terrible, denn im Land der Sonne sprach jeder mit Überzeugung Französisch, auch wenn er es schlecht sprach. As long as he wore shorts, his family friends considered him an enfant terrible, because in the Land of the Sun everyone spoke French with conviction, even if they spoke it badly. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Junge, Junge, wurde Antenor alarmierend. Boy, however, Antenor became alarming. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Unter anderem dachte Antenor frei und selbstständig. Among other things, Antenor thought freely on his own. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam. Thus, the family saw Antenor's arrival as the revolution itself; the teachers were indignant because he learned the opposite of what they taught; his friends hated him; the passers-by, seeing him go by, smiled.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. |||found out|||||||||||||||||||| There was only one thing Antenor's mother discovered so that she wouldn't be forced to send him away: Antenor didn't mean anything by what he did. Ao contrário. On the contrary. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. It was outrageously, incomprehensibly good. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. In fact||||||eyes| In fact, just for her, for her mother's eyes. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. ||||||||||||walking stick|||||||||||"madman"| Because when Antenor decided to find work for the beggars and beat the parasites in the street with a cane, it proved that Antenor was just a raving lunatic. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade. Not only for the victims of his kindness, but also for the enlightened intelligence of the police officers to whom he had to explain his charity.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. ||||||||||||||||young heir||||bachelor's degree|||public employee|||leaving to||||riffraff||||||||||||||||||||||||||||||||||knife|||||||||||||||||| In order to convince Antenor that he should follow the legal procedures of a young manor, i.e.: become a bachelor and then a nationalist civil servant, leaving the rest to the activity of foreign scoundrels, the family's congregated interests in the name of principles organized several meetings like those held in the non-existent American democracy to prove that the key opens doors and the knife is used to cut what is ours for us and what is others' for us. Antenor, diante da evidência, negou-se. Antenor, faced with the evidence, refused.

— Ouça! Listen! - Listen! bradava o tio. "was babbling"|| his uncle shouted. Bacharel é o princípio de tudo. Bachelor is the beginning of everything. Não estude. Don't study. Pouco importa! It doesn't matter! Mas seja bacharel! But be a bachelor! Bacharel você tem tudo nas mãos. You have everything in your hands. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro. |||||||flatter|||rise|| Next to a politician-in-chief, knowing how to flatter, it's uphill: deputy, minister.

— Mas não quero ser nada disso. - But I don't want to be any of those things.

— Então quer ser vagabundo? - So you want to be a bum?

— Quero trabalhar. - I want to work.

— Vem dar na mesma coisa. - It comes to the same thing. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. A tramp is someone who lacks three things: money, prestige and position. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo. As long as you don't have them, even if you work - you're a bum.

— Eu não acho. - I don't think so.

— É pior. - It's worse. É um tipo sem bom senso. He's a guy with no common sense. É bolchevique. He's a Bolshevik. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Working for others is an illusion. Você está inteiramente doido. You're out of your mind.

Antenor foi trabalhar, entretanto. Antenor went to work in the meantime. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. And he found it very difficult to work. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. You could say that the originality of his life was working for the sake of working. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Granting|||||||||||||||bad||||||||| Complying with the request of the respectable lady who was Antenor's mother, Antenor toured his bad head around various business houses, various industrial companies. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. After a year, two months, I was on the street. Por que mandavam embora Antenor? Why did they send Antenor away? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. |||||||||||||envy||battalions||bitter people| Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. |||||||||||||||"put up with" Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. ||||puts up with|||| Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. ||||||employee|| É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. |||||||||||||grudge Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. ||habit|||||| Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Spoils||||||||| Mau companheiro. Bad|Bad companion. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor: |||||||had left|||||||

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias. |||of||||||||||

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não.

Mas podia prejudicar. |could|cause harm Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu. ||||||eagle|||||||

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. ||||||is||freemasonry Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. ||||||||||||||||customary practice|||||||| Não o toleravam. Did not||did not tolerate Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. |||||||||||||for as long não o tinham explorado.

Antenor ria. |Antenor would laugh. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. ||misfortunes|were|||joke Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. ||||||||||||||||bound||||others' opinions Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. |||||||vanities||||| Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? |||Such a wretch Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. The|||||greeted| Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. |||school|||||||||||fabrics factory||||||||||||||||||streetcar conductor Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. ||girl|named||||||laundry woman||| Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. |||||||mental disorder||| Everyone saw this as further proof of Antenor's brain disorder. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional. ||astonishment|||||Maria Antônia|||

— Só caso se o senhor tomar juízo. ||||||good sense

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido. |||fix|||||

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". |||||||||||||||||signboard|||||other delicate mechanisms|||| Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada? Disheveled?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. |||||parts Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. ||||||||||||disassembly| As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar. ||let her

— Pois aqui a tem. Conserte-a. Fix it.| O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua. |||||||put on||||||||

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. |||||||||||poker||||||||||||infested with bugs|||| Two months later, Antenor had a lot of friends, he was playing poker with the Minister of Agriculture, and he was making a small fortune selling rotten beans to the Allied armies. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. ||||||||||cheat||||||| Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco. |||||||||pride in|||||||||crazy

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. |||rejected||proposing||||||discredit him|| Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. |||||||||balloons Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. ||||||||||||agree on|||||||||||||| O nome de Antenor era cotado. |||||considered Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la. - Ich gehe ran.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a? Fixed it?|

— Não.

— Então, desarranjo grande? |big mess|

O homem recuou. ||The man retreated.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. |||||||||||||"such as"||| Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. ||plate|||||||||||| O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique. |||||||glass dome||

— Qual! V.EX. |Your Excellency terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.