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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 2. O pecado original - Part 2

2. O pecado original - Part 2

sobre a forma de contrabando contra essa lei.

Quem enterra essa lei aí?

As forças obscuras que fizeram o golpe de 64

e que elegeram o Bolsonaro.

Evidentemente, não são as mesmas pessoas,

mas é o mesmo espectro do campo político.

Na época, essas forças obscuras eram os grandes fazendeiros,

cafeicultores do Vale do Paraíba, do Rio de Janeiro e de São Paulo,

mais proprietários do sudeste de Minas Gerais e do oeste de Minas Gerais.

Na época, essa gente era podre de rica,

formava o império da ostentação.

Aqueles fazendeiros fizeram pressão para suspender a lei de 1831

e receberam licença para escravizar ilegalmente a rodo

a partir de 1835, 1836, por cerca de 15 anos.

E eles escravizaram, Tiago.

Um tratado com a Inglaterra de antes da independência, de 1818,

já proibia o tráfico de pessoas sequestradas em países africanos

acima da linha do Equador.

Ainda assim, pelo menos 50 mil pessoas desses países

foram trazidas nesse período.

Depois da Lei de 1831, pelo menos 740 mil pessoas

foram ilegalmente trazidas para o Brasil.

740 mil pessoas que, pela lei, não poderiam ter sido sequestradas e trazidas para cá.

E uma vez que foram trazidas, deveriam ter sido imediatamente colocadas em liberdade.

E não só essas pessoas foram ilegalmente escravizadas,

como seus descendentes, porque a escravidão seguia o útero.

Se uma mulher escravizada ficasse grávida,

o filho dela, por lei, era considerado propriedade do senhor.

O Tâmis Pahom chama o que aconteceu nesse período de a política da escravidão.

Foi um pacto político, um arranjo de acordo entre elites

tão importante quanto um pacto constitucional.

Quem a política da escravidão envolve?

Os grandes políticos da época, o centro de comando do Estado,

a elite financeira do Rio de Janeiro, que era a corte do Império do Brasil,

e os grandes proprietários de terra e de escravos do país.

Em torno da defesa da escravidão e da defesa do tráfico negreiro,

como uma estratégia mesmo para gerar riqueza privada,

para gerar crescimento econômico e para financiar o Estado Imperial,

que na época estava sendo construído.

Tinha uma facção na Câmara dos Deputados que eram os conservadores,

também chamados de Partido do Regresso ou então Sacoaremas,

e eles começaram a defender em bloco a reabertura do tráfico.

Teve um deputado, o Bernardo Pereira de Vasconcelos,

que pediu a revogação da lei, argumentando que a culpa não era

nem dos traficantes nem dos fazendeiros que insistiam na ilegalidade.

Segundo ele, quem estava errado era quem delatava os criminosos

para receber as recompensas em dinheiro que a lei previa.

Até o autor da lei, o Marquês de Barbacena, propôs que ela fosse revogada.

Ele falou que era intolerável que os proprietários tranquilos,

chefes de família respeitáveis, homens cheios de indústria e virtude

pudessem ser incriminados por causa do tráfico.

Mas não só parlamentares e senhores de escravos tinham culpa nesse cartório aí.

O governo também.

Os traficantes, e a gente já falou sobre isso aqui,

eram as pessoas mais ricas do Brasil.

E eles sempre diversificaram os investimentos,

por exemplo, concedendo empréstimos tanto para particulares quanto para o governo.

E o império era o principal devedor desses traficantes.

Devia para os mesmos caras que agora, na teoria, deveria combater.

Nesse momento que a atenção da imprensa está voltada para o Covid,

o Tesouro Imperial também arrecadava e muito custos.

E também muito com o comércio negreiro e com a produção dessa mão de obra escravizada.

A oportunidade que nós temos é passar as reformas infralegais de desregulamentação.

Como a proibição do tráfico fez a arrecadação cair,

o império decidiu deixar passar a boiada.

Então, para isso, precisa ter um esforço nosso aqui,

enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa,

porque só fala de Covid, e ir passando a boiada.

Talvez nós tenhamos tido o primeiro episódio da boiada na história brasileira,

o que faz sentido, porque se a política do contrabando, do tráfico negreiro e da escravidão são

a nossa primeira política pactuada de crescimento econômico,

faz sentido que a primeira boiada não seja essa agora do Ricardo Salles,

mas seja dos escravistas da década de 1830, 1840,

e os seus apaniguados políticos, políticos coniventes e co-gestores do crime.

Porque o que eles estão fazendo é um crime, não uma imoralidade para os nossos valores.

É um crime medido pela régua da própria legislação da época.

De modo geral, o Estado recebia legitimidade porque ganhava o apoio tácito

das classes proprietárias e endinheiradas, os políticos recebiam apoio político,

o Ministério da Fazenda ampliava sua base fiscal, porque o aumento da escravidão

significava aumento das exportações. Então, quem estava no andar de cima da máquina pública

também levava o seu.

O Estado brasileiro tem uma responsabilidade absoluta sobre a reabertura do tráfico

a partir de 1830, por alguns motivos.

Aqui de novo o Tiago Campos Pessoa, que estudou a fundo a trajetória dos Irmãos Breves.

O Tiago já escreveu que essa liberação do contrabando foi um dos maiores casos,

se não o maior caso de corrupção sistêmica da história do Brasil.

As autoridades brasileiras foram mais do que coniventes, foram partícipes,

tomaram parte a favor do tráfico. A elite política imperial fez silenciar

sobre o desenvolvimento do tráfico. Todo mundo sabia, a elite sabia, a sociedade sabia,

que essa coisa continuava acontecendo porque era algo do qual o próprio Estado brasileiro

precisava para a sustentação da sua pauta de exportação, muito atrelada ao café, essencialmente.

E é aí que entram os Irmãos Breves.

Na verdade, esses senhores são estudos de caso interessante para a gente entender

como uma parcela importante da elite sustentou, em termos práticos, a continuidade

do comércio de africanos e a transformação do próprio comércio de africanos em uma atividade

que talvez não tivesse parâmetro em termos de lucratividade e em termos de dimensão,

de deslocamento atlântico para o Brasil até então. A estimativa é que,

dos quase 5 milhões de africanos que desembarcaram no Brasil em cerca de 300 anos de tráfico,

mais de 2 milhões tenham desembarcado na primeira metade do século XIX

e desses, 800 mil em 20 anos do período que o tráfico é ilegal.

Em outras palavras, a gente pode dizer que esse período da ilegalidade,

em que esses senhores foram protagonistas, foi o período da nossa história

onde o tráfico de africanos foi mais volumoso, mais intenso e talvez e provavelmente mais cruel.

Se é que a gente pode traçar paralelo de crueldade.

Os irmãos Breves viram na proibição do tráfico não um problema, mas uma oportunidade de negócios.

É a tal alma empreendedora. Muito traficante antigo tinha pulado fora.

Os irmãos viram esse vácuo de poder e assumiram a operação.

O que eu diria que realmente mudou com o tráfico, inicialmente, seriam os portos.

De sair dos portos de chegada. Com a ilegalidade, você tem uma dispersão pelo litoral africano.

Da mesma forma que há uma dispersão no litoral africano, há uma dispersão no litoral brasileiro.

Então, os portos legais, por exemplo, o mais famoso deles é o mercado Valongo.

Essa região portuária do Rio de Janeiro em torno do Valongo, ele deixa de existir de fato.

Antes da proibição, o cais do Valongo tinha recebido sozinho 1 milhão de pessoas.

Há dispersão desses desembarques ao longo da costa brasileira.

Então, áreas hoje são áreas turísticas famosíssimas no Rio de Janeiro, como Ilha Grande, Búzios.

É um litoral que começa a se especializar com algumas praias específicas na recepção de africanos.

E, claro, os irmãos Breves não estavam agindo sozinhos.

Não era só para abastecer as dezenas de fazendas deles que eles contrabandeavam.

Uma coisa que eu acho que muda de maneira interessante é o envolvimento da própria classe royal,

da elite imperial, com o tráfico.

Por ser ilegal, essa elite precisa sustentar não só politicamente, como sustentou,

mas ela precisa criar as condições sociais, até mesmo logísticas,

para que esse comércio aconteça a despeito da ilegalidade.

Então, a gente pode dizer com certa tranquilidade que os 800 mil africanos que chegaram aqui,

eles só chegaram porque uma fração, talvez hegemônica, ou seja, a fração mais importante da elite brasileira,

criou as condições políticas, sociais, econômicas e infraestruturais para que esse tráfico acontecesse.

E o que a gente vê, de certa forma, na própria produção da história brasileira,

é uma certa construção de uma isenção sobre esses indivíduos,

como se eles tivessem sido também vítimas, eles, dos traficantes.

Mas eles não eram vítimas, não só porque...

Mas espera aí que ainda está faltando gente nessa equação.

Não era só o Estado brasileiro, os políticos, não eram só os traficantes, nem eram só as elites.

A escravidão era não só um ativo econômico, mas ela era uma instituição compartilhada por boa parte da sociedade.

Aqueles que não eram senhores de escravo queriam ser.

Então, nos anos 1830, 1840, o brasileiro comum também apoiava o tráfico de africanos.

Ele não via algo maléfico, ele não via problema moral, humanitário, naquele comércio.

O buraco é muito mais embaixo.

É mais fácil a gente pensar numa história com um grande vilão, ou com os grandes vilões.

Mas a realidade não costuma ser tão simples assim.

A fotografia da sociedade brasileira como um todo é bem mais feia do que se quer admitir.

Esse tráfico só se manteve clandestino em operação porque houve um amplo acordo nacional para que ele continuasse existindo.

Um grande acordo nacional.

Então, por exemplo, José e Joaquim Breves montaram fazendas litorâneas para articular o tráfico.

Houve a participação direta, diretiva das autoridades, que por vezes eram as próprias autoridades dos fortes dessas praias,

que faziam o recebimento dos africanos. É algo assim inacreditável.

Os irmãos Breves tinham essas duas fazendas gigantescas, longe da corte,

montadas especificamente para receber esses navios ilegais e para fazer a engorda dos escravizados antes de eles serem distribuídos.

De vez em quando, o governo brasileiro fazia uma ou outra apreensão de navio só para fingir que estava cumprindo a lei.

Para inglês ver.

E numa dessas operações, apreenderam o barco União Feliz, do Joaquim,

aquele mesmo que tinha feito a mudança da ex-amante do Pedro I.

Durante todo esse período, os irmãos Breves continuaram super próximos do poder e aumentando a influência política.

Eles só se tornaram comendadores, por exemplo, no fim dos anos 40, quando já estavam contrabandeando há quase 20 anos.

Nos anos 40 também, cada um deles chegou a acumular, ao mesmo tempo, as funções de deputado provincial, vereador e juiz de paz dos seus municípios.

Sabe quem era incumbido no interior de decidir sobre os navios suspeitos de contrabando?

O juiz de paz.

Era a raposa tomando conta do galinheiro.

A audácia em burlar a fiscalização, isso era muito próprio do Joaquim Breves.

Ele não tinha medo de nada, ele não se importava.

A própria Restinga da Marambaia foi adquirida pelo Joaquim para servir de recepção de mão de obra escravizada.

Então o Joaquim tinha embarcações que trafegavam continuamente entre o litoral e a ponta da Restinga, que é a ilha da Marambaia.

E ali na ilha ele tinha uma grande senzala e o navio tumbeiro vinha da África e desembarcava a carga na Marambaia, a carga humana.

Aqui de novo o Aloísio, advogado e pesquisador que a gente ouviu no começo do episódio.

Aliás, já faz tanto tempo que ele se apresentou que eu vou colocar de novo.

Meu nome é Aloísio Clemente Maria Infante de Jesus Breves Beiler.

Em alguns locais, como por exemplo Piraí, era comum o garoto,

tinha um professor que ele costumava dizer o seguinte,

abram alas que está entrando a nobreza de Piraí.

Eu não entendia muito aquilo, mas era o que ele usava.

Tempos depois, na faculdade, algumas pessoas vinham falar comigo e falavam,

você é Breves, da família Breves? Sou.

Eu descendo do Joaquim Breves, eu sou a quinta geração.

Uma vez uma jornalista me fez essa pergunta,

como você consegue viver carregando um nome tão pesado quanto esse?

A corda é grande, Jorge? Se a corda não for grande, foi pouca.

Já está encalhando.

Já está encalhando?

Está calçado, Jorge? Olha o bagre, rapaz. Olha o bagre.

É, porque aqui é rasinho assim, né?

É, aqui é rasinho.

E isso aqui era um caminho para a fazenda?

Sim.

Desembarcava ali no mar?

Desembarcava ali, teve as ruínas do cais.

Esta é a Vânia Guerra.

Aqui são as ruínas da fazenda de Engorda, gente.

Como vocês estão vendo, só tem as pilastras.

A gente foi até a Ilha da Marambaia, que fica na ponta da Restinga de Marambaia.

De carro fica a umas duas horas do rio, depois mais uns 30, 40 minutos de barco.

Aqui era a senzala?

Aqui era a senzala.

Isso aqui é barro cozido, olha.

Isso é barro cozido, olha que coisa linda.

Esse tijolo ainda há pouco tempo estava se fazendo aqui.

Isso aqui é trabalho de mazimbas, de engenheiros mazimbas.

Dentro dela está abraçado o fogão, que é o fogão que faz a cozinha.

Lá está abraçado o fogão, que era feito o zangüento,

que era feita a comida dos negros, que era feito o gemédio.

E um dos gemédios muito importantes que ficou aqui para a gente foi a arueira,

que ainda hoje o povo usa vários tipos de ervas.

Isso é tudo o que restou do que um dia foi a senzala de uma dessas fazendas dos Irmãos Breves,

que funcionava especificamente para receber os navios no período do contrabando.

Ali tem um quilombo, o quilombo da Ilha da Marambaia,

formado por remanescentes daquelas pessoas trazidas para o Brasil no período do contrabando.

Nós estamos aqui na Praia do Sino.

Os navios se aportavam ali, atrás dessa ilha.

E dali que os negros eram tirados e levados para a fazenda durante a escravidão por uma canoa.

Esses negros que iam por Mazém, eles vinham de lado do continente africano para cá.

Aqui eles ficavam em quarentena, porque aí a fazenda daqui, que antes era de café,

passou a ser de engordar negros roubados.

Aqui eles engordavam, se recuperavam e eram vendidos ou reaproveitados nas fazendas.

Então, toda a comunidade quilombola do litoral sul-fluminense do Rio,

todos eles passaram por aqui, são todos nossos parentes.

Quando estive na Marambaia, eu falei, calma, eu não sou a reencarnação do Comentador Breves.

Quer dizer, o nome causa espanto.

Aqui de novo o Aloísio Breves, descendente do Joaquim Breves.

Eu vejo isso, muito isso, no interior do Estado.

Uma espécie de patriarcado ainda dominante, aquela coisa detestável de sabe com quem está falando.

E às vezes eu sou até tratado assim em alguns lugares.

Você, por conta do nome, é livrado de qualquer obstáculo.

É uma coisa curiosa, o que o Brasil ainda produz.

Lembra que ele estava contando que uma jornalista perguntou para ele uma vez

como você consegue viver carregando um nome tão pesado quanto esse?

Eu falei, olha, eu não vivi aquela época, não vivi aquela época.

Eu sou da família, porque nasci na família, mas eu não convivi com o Joaquim,

não compartilho com as ideias escravistas dele, não compartilho com nada disso.

Mas eu sou produto disso.

O que eu faço é divulgar essa história.

Por quê?

É uma história tão fantástica e tão bizarra que ela merece ser contada.

Isso faz parte da história do Brasil.

O Joaquim participou do Grip de Ipiranga, o Joaquim foi político,

considerado por muitos, foi o homem mais rico do Brasil num determinado período,

o rei do café.

O Aloysio tem um site em que ele reuniu tudo o que pesquisou sobre a própria família,

inclusive esses muitos esqueletos no armário.

O endereço é brevescafétudojunto.net.

Eu acho que isso é para ser divulgado, é para ser criticado,

ser objeto de estudo, ser aprofundado para que as pessoas

Eu já ouvi de pessoas que o breves era bom porque ele tratava os escravos de maneira diferente.

Bom, se era escravo dele, já é ruim.

Porque tem relatos dele levar os escravos ao tronco e mandar espancar,

relatos assim muito ruins, marcava as pessoas.

Imagina se cada família brasileira que enriqueceu com a escravidão

também pesquisasse sobre o breves.

Imagina se cada família brasileira que enriqueceu com a escravidão

também pesquisasse e divulgasse essa história.

Tem muita informação que está guardada em porão, em armário, em baú.

Informação que poderia levar pessoas negras a descobrirem mais sobre as suas histórias,

as suas famílias.

Pessoas que, como eu, não têm direito a saber de onde os seus antepassados vieram.

O Brasil tem uma grande dificuldade em contar a sua história.

Então, me afeta o nome, mas não afeta o meu bom senso e o meu discernimento.

A história tem que ser contada, tem que ser avaliada, tem que ser descrita.

Porque a pior coisa é você não conhecer a sua história.

E no caso da família breve, a família breve tem história para contar.

Tem explicações a dar, tem histórias a contar.

Tem grandes exemplos, é óbvio que tem, de benemerência, de acolhimento.

Mas tem todo esse lado obscuro da escravidão,

que foi um modelo adotado pelo Brasil para subsistir e para prosperar na sua riqueza.

E olha, eu vou dizer aqui de novo.

Não foram só os tradicionais brasileiros que foram assim.

E olha, eu vou dizer aqui de novo.

Não foram só os traficantes, os contrabandistas, que enriqueceram com a escravidão.

Em 1850, o contrabando negreiro finalmente teve fim.

Foi aprovada uma nova lei, que acabou conhecida como a Lei Eusébio de Queiroz.

E a gente vai falar mais sobre ela em outro episódio.

O que importa dizer agora aqui é que o governo, enfim, endureceu a fiscalização.

E não podia mais chegar navio com africanos sequestrados.

Com o fim do contrabando, todo esse dinheiro acabou ficando ocioso no mercado.

Porque o tráfico era um negócio de muitos investidores.

Daí rolou uma febre consumista e a boa gente rica brasileira começou a importar,

mais do que nunca, tudo quanto é coisa da Europa.

Perfume, roupa, arma de fogo, piano.

Houve uma superabundância de dinheiro, especialmente no Sudeste,

que acabou assumindo ainda mais protagonismo por causa da explosão do café.

E essa superabundância resultou no ressurgimento do Banco do Brasil,

que tinha sido fechado quando o Dom João VI foi embora, levando todo o dinheiro.

Nos anos 50, o Visconde de Mauá, grande empreendedor brasileiro,

que já tinha ganhado bastante dinheiro fabricando navios que eram usados para o tráfico,

ah sim, e quem fabricava eram trabalhadores assalariados e trabalhadores escravizados.

Bom, mas o Visconde de Mauá liderou um grupo de empresários

que não tinha onde colocar esse dinheiro ocioso.

E essa turma criou um banco privado, que depois se fundiu com outro

e foi transformado no Banco Oficial do Império, hoje o Banco do Brasil.

Desde a invasão pelos portugueses, em 1500,

foi a escravidão que gerou todas as riquezas do Brasil.

E eu vou dizer isso de novo, todo o setor da economia contava com trabalho escravo.

O sujeito podia ter uma lojinha, ter um escravizado e trabalhar lado a lado com ele.

Uma enorme diferença que um recebia e o outro não,

fora tudo mais o que está relacionado a não ter a própria liberdade, né?

Pensar numa riqueza construída antes da abolição

é pensar numa riqueza conquistada por meio da crueldade.

E uma riqueza que foi deixada como herança para os descendentes desses senhores de escravos.

E mesmo pensando depois da abolição,

qual família rica brasileira não se beneficiou dos privilégios

e das relações sociais e de trabalho sedimentadas por uma sociedade

que por mais de 300 anos escravizou um grupo, o das pessoas negras e indígenas,

e durante todo esse período impediu a ascensão desse grupo.

A escravidão acabou, mas o racismo continuou na república,

sempre como uma escolha política,

para que um grupo continuasse a ser subjugado pelo outro,

para a continuidade de quem sempre esteve no poder.

Qual pessoa branca rica, mesmo às saídas do nada, a self-made,

não se beneficiou e se beneficia até hoje dessas relações?

E qual pessoa branca, mesmo que não é rica,

não acaba se beneficiando das diferenças abissais de oportunidades

que uma sociedade estruturalmente racista oferece para sua população?

Uma pesquisa divulgada recentemente mostra que trabalhadores negros

ainda ganham menos que os brancos, e que além da diferença salarial,

para os negros alcançar altos postos também é mais difícil.

Um estudo apresentado hoje em São Paulo

mostra que mesmo com o ensino superior,

a diferença salarial entre trabalhadores brancos e negros chega a 29%.

Na história do Brasil, enquanto os brancos podiam brincar de empresário,

de investidor, de empreendedor,

os negros tinham de lutar para sobreviver.

E ainda é assim.

Saber de toda essa luta do meu avô, do meu bisavô,

para a gente eles estão vivos, perderam o corpo,

e estão vivos.

Então, assim, a gente não podia decepcionar.

Porque a luta deles, essa era a nossa herança,

era a nossa herança e tínhamos que abraçar.

E aí a gente saiu brigando, lutando com as forças que tinham,

com as armas que tinha.

Mesmo depois da lei de 1850,

os irmãos breves continuaram a contrabandear pessoas ilegalmente escravizadas.

Houve pelo menos quatro viagens que foram flagradas pelas autoridades.

Por uma ironia do destino, foi essa sanha de não largar o osso

que teria impedido os dois de subirem ainda mais na escala da nobreza brasileira.

Nenhum deles jamais chegou a receber o título de barão.

Estacionaram em encomendador.

Em 1953, o governo fez uma operação numa fazenda do José de Sousa Breves

para encontrar africanos contrabandeados.

O José enviou uma carta para o Eusébio de Queiroz,

que nessa época era ministro da Justiça e comandava a fiscalização da Lei de 50.

O José estava com medo de que o governo fosse libertar todo mundo

que tinha chegado desde 1931, desde o início da ilegalidade.

E o Eusébio disse para ele que podia ficar tranquilo, que

qualquer busca que se dê é para procurar os negros agora importados

e nunca para entender com o passado.

Isso é uma coisa muito importante, porque a última geração de escravo no Brasil

é uma geração basicamente de escravos ilegais, aquelas pessoas juridicamente eram livres.

Então a escravidão por si já é um horror, é uma barbárie, é uma aberração.

Imagine uma escravidão que juridicamente é ilegal pelas leis do país escravizador.

Aqui de novo o Tiago Campos Pessoa.

Isso é uma coisa que eu acho que já ficou claro, mas não custa nada repetir.

Cada pessoa africana que foi trazida de algum país ao norte do Equador desde 1818

e todas as que foram trazidas desde 1931,

cada uma dessas quase 800 mil pessoas mais os seus descendentes,

um número que infelizmente a gente não consegue saber qual é,

cada uma dessas pessoas foi escravizada ilegalmente.

Era contra a lei, um crime segundo as leis do Brasil.

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, que é um grande estudioso da nossa história e da escravidão,

ele chama o que aconteceu nesse momento de o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.

Porque houve mais uma vez um grande pacto nacional,

agora para garantir que todas essas pessoas não fossem libertadas,

para evitar rebeliões, para garantir a segurança de posse,

para evitar que as pessoas não fossem libertadas,

para evitar rebeliões, para garantir a segurança de posse dos proprietários,

os ricos e poderosos, a classe política, toda essa boa gente brasileira,

mais uma vez se calou.

E a escravidão continuou por mais 38 anos, só terminou em 88.

Para o Luiz Felipe de Alencastro, a última geração de escravizados no Brasil

era formada em sua esmagadora maioria por indivíduos livres, sequestrados e ilegalmente escravizados.

O pecado original do Brasil.

E tem outra coisa, a lei de 31 tipificava quem continuasse a contrabandear como sequestrador,

um crime previsto no código criminal da época.

E o que aconteceu na prática com esses contrabandistas?

Anistia.

Um exemplo perfeito disso é o do Eusebio de Queiroz,

o ministro da Justiça, o representante do Império do Brasil,

estava dizendo para um desses criminosos,

ó, a partir de agora você tem que parar com isso.

O que passou, passou.

É muito emblemático essa passagem, não se entender com o passado.

Nosso país, a nossa sociedade, até hoje não se entendeu com o seu passado.

Quando o Eusebio de Queiroz disse isso, o que ele estava querendo dizer é o seguinte,

olha, os africanos que entraram antes da lei de 1850,

da segunda lei antitráfico, da lei Eusebio de Queiroz,

eles vão permanecer na escravidão.

E ele diz isso porque ele está mirando a elite imperial

que tem boa parte dos seus escravos africanos ilegalmente importados.

Quantas vezes na história do Brasil o país teve a chance de se entender com o passado

e escolheu não fazer isso?

Foi assim em 1850?

Foi assim com a abolição que veio sem compensação nenhuma?

Foi assim com a ditadura militar?

Vai ser assim até quando?

Para o nosso futuro, eu quero que essas coisas sejam mudadas,

que as pessoas agora que têm condições de saber,

têm condições de estudar, de compreender,

e aí que faça melhor para que não fique mais ninguém de fora.

Para que ninguém perca de conviver com a herança que temos.

Porque isso é a nossa herança.

E também de compreender que a resistência vai ser o ponto crucial da nossa herança.

A herança nossa é a resistência.

O projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga.

O podcast é produzido pela Rádio Novelo.

O nosso site projetoquirino.com.br

reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

E eu te convido a conferir também todo o material do projeto Quirino

que está sendo publicado pela revista Piauí,

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio,

Rafael Domingos Oliveira, Yasmin Santos e Angélica Paulo,

que também fez a produção.

A edição é do Luca Mendes e a sonorização da Júlia Matos.

A finalização da Pipoca Sound.

A checagem é do Gilberto Porcidônio e a música original do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital, Bia Ribeiro.

A identidade visual é do Draco Imagem.

Os transcritores das entrevistas foram Guilherme Póvoas e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound com trabalhos técnicos do João Muniz.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe, Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe,

com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história, Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva, Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ISPIS,

Instituto Sincronicidade para a Interação Social.

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação, Thiago Rogero.

Este episódio usou áudios da TV Globo e do SBT.

Agradecimentos a Bárbara Guerra e ao Jorge Moreira.

Até o próximo!


2. O pecado original - Part 2 2. Erbsünde - Teil 2 2. Original Sin - Part 2 2. El pecado original - Parte 2 2. Grzech pierworodny - część 2 2. İlk günah - Bölüm 2 2.原罪--第二部分

sobre a forma de contrabando contra essa lei.

Quem enterra essa lei aí?

As forças obscuras que fizeram o golpe de 64

e que elegeram o Bolsonaro.

Evidentemente, não são as mesmas pessoas,

mas é o mesmo espectro do campo político.

Na época, essas forças obscuras eram os grandes fazendeiros,

cafeicultores do Vale do Paraíba, do Rio de Janeiro e de São Paulo,

mais proprietários do sudeste de Minas Gerais e do oeste de Minas Gerais.

Na época, essa gente era podre de rica,

formava o império da ostentação.

Aqueles fazendeiros fizeram pressão para suspender a lei de 1831

e receberam licença para escravizar ilegalmente a rodo

a partir de 1835, 1836, por cerca de 15 anos.

E eles escravizaram, Tiago.

Um tratado com a Inglaterra de antes da independência, de 1818,

já proibia o tráfico de pessoas sequestradas em países africanos

acima da linha do Equador.

Ainda assim, pelo menos 50 mil pessoas desses países

foram trazidas nesse período.

Depois da Lei de 1831, pelo menos 740 mil pessoas

foram ilegalmente trazidas para o Brasil.

740 mil pessoas que, pela lei, não poderiam ter sido sequestradas e trazidas para cá.

E uma vez que foram trazidas, deveriam ter sido imediatamente colocadas em liberdade.

E não só essas pessoas foram ilegalmente escravizadas,

como seus descendentes, porque a escravidão seguia o útero.

Se uma mulher escravizada ficasse grávida,

o filho dela, por lei, era considerado propriedade do senhor.

O Tâmis Pahom chama o que aconteceu nesse período de a política da escravidão.

Foi um pacto político, um arranjo de acordo entre elites

tão importante quanto um pacto constitucional.

Quem a política da escravidão envolve?

Os grandes políticos da época, o centro de comando do Estado,

a elite financeira do Rio de Janeiro, que era a corte do Império do Brasil,

e os grandes proprietários de terra e de escravos do país.

Em torno da defesa da escravidão e da defesa do tráfico negreiro,

como uma estratégia mesmo para gerar riqueza privada,

para gerar crescimento econômico e para financiar o Estado Imperial,

que na época estava sendo construído.

Tinha uma facção na Câmara dos Deputados que eram os conservadores,

também chamados de Partido do Regresso ou então Sacoaremas,

e eles começaram a defender em bloco a reabertura do tráfico.

Teve um deputado, o Bernardo Pereira de Vasconcelos,

que pediu a revogação da lei, argumentando que a culpa não era

nem dos traficantes nem dos fazendeiros que insistiam na ilegalidade.

Segundo ele, quem estava errado era quem delatava os criminosos

para receber as recompensas em dinheiro que a lei previa.

Até o autor da lei, o Marquês de Barbacena, propôs que ela fosse revogada.

Ele falou que era intolerável que os proprietários tranquilos,

chefes de família respeitáveis, homens cheios de indústria e virtude

pudessem ser incriminados por causa do tráfico.

Mas não só parlamentares e senhores de escravos tinham culpa nesse cartório aí.

O governo também.

Os traficantes, e a gente já falou sobre isso aqui,

eram as pessoas mais ricas do Brasil.

E eles sempre diversificaram os investimentos,

por exemplo, concedendo empréstimos tanto para particulares quanto para o governo.

E o império era o principal devedor desses traficantes.

Devia para os mesmos caras que agora, na teoria, deveria combater.

Nesse momento que a atenção da imprensa está voltada para o Covid,

o Tesouro Imperial também arrecadava e muito custos.

E também muito com o comércio negreiro e com a produção dessa mão de obra escravizada.

A oportunidade que nós temos é passar as reformas infralegais de desregulamentação.

Como a proibição do tráfico fez a arrecadação cair,

o império decidiu deixar passar a boiada.

Então, para isso, precisa ter um esforço nosso aqui,

enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa,

porque só fala de Covid, e ir passando a boiada.

Talvez nós tenhamos tido o primeiro episódio da boiada na história brasileira,

o que faz sentido, porque se a política do contrabando, do tráfico negreiro e da escravidão são

a nossa primeira política pactuada de crescimento econômico,

faz sentido que a primeira boiada não seja essa agora do Ricardo Salles,

mas seja dos escravistas da década de 1830, 1840,

e os seus apaniguados políticos, políticos coniventes e co-gestores do crime.

Porque o que eles estão fazendo é um crime, não uma imoralidade para os nossos valores.

É um crime medido pela régua da própria legislação da época.

De modo geral, o Estado recebia legitimidade porque ganhava o apoio tácito

das classes proprietárias e endinheiradas, os políticos recebiam apoio político,

o Ministério da Fazenda ampliava sua base fiscal, porque o aumento da escravidão

significava aumento das exportações. Então, quem estava no andar de cima da máquina pública

também levava o seu.

O Estado brasileiro tem uma responsabilidade absoluta sobre a reabertura do tráfico

a partir de 1830, por alguns motivos.

Aqui de novo o Tiago Campos Pessoa, que estudou a fundo a trajetória dos Irmãos Breves.

O Tiago já escreveu que essa liberação do contrabando foi um dos maiores casos,

se não o maior caso de corrupção sistêmica da história do Brasil.

As autoridades brasileiras foram mais do que coniventes, foram partícipes,

tomaram parte a favor do tráfico. A elite política imperial fez silenciar

sobre o desenvolvimento do tráfico. Todo mundo sabia, a elite sabia, a sociedade sabia,

que essa coisa continuava acontecendo porque era algo do qual o próprio Estado brasileiro

precisava para a sustentação da sua pauta de exportação, muito atrelada ao café, essencialmente.

E é aí que entram os Irmãos Breves.

Na verdade, esses senhores são estudos de caso interessante para a gente entender

como uma parcela importante da elite sustentou, em termos práticos, a continuidade

do comércio de africanos e a transformação do próprio comércio de africanos em uma atividade

que talvez não tivesse parâmetro em termos de lucratividade e em termos de dimensão,

de deslocamento atlântico para o Brasil até então. A estimativa é que,

dos quase 5 milhões de africanos que desembarcaram no Brasil em cerca de 300 anos de tráfico,

mais de 2 milhões tenham desembarcado na primeira metade do século XIX

e desses, 800 mil em 20 anos do período que o tráfico é ilegal.

Em outras palavras, a gente pode dizer que esse período da ilegalidade,

em que esses senhores foram protagonistas, foi o período da nossa história

onde o tráfico de africanos foi mais volumoso, mais intenso e talvez e provavelmente mais cruel.

Se é que a gente pode traçar paralelo de crueldade.

Os irmãos Breves viram na proibição do tráfico não um problema, mas uma oportunidade de negócios.

É a tal alma empreendedora. Muito traficante antigo tinha pulado fora.

Os irmãos viram esse vácuo de poder e assumiram a operação.

O que eu diria que realmente mudou com o tráfico, inicialmente, seriam os portos.

De sair dos portos de chegada. Com a ilegalidade, você tem uma dispersão pelo litoral africano.

Da mesma forma que há uma dispersão no litoral africano, há uma dispersão no litoral brasileiro.

Então, os portos legais, por exemplo, o mais famoso deles é o mercado Valongo.

Essa região portuária do Rio de Janeiro em torno do Valongo, ele deixa de existir de fato.

Antes da proibição, o cais do Valongo tinha recebido sozinho 1 milhão de pessoas.

Há dispersão desses desembarques ao longo da costa brasileira.

Então, áreas hoje são áreas turísticas famosíssimas no Rio de Janeiro, como Ilha Grande, Búzios.

É um litoral que começa a se especializar com algumas praias específicas na recepção de africanos.

E, claro, os irmãos Breves não estavam agindo sozinhos.

Não era só para abastecer as dezenas de fazendas deles que eles contrabandeavam.

Uma coisa que eu acho que muda de maneira interessante é o envolvimento da própria classe royal,

da elite imperial, com o tráfico.

Por ser ilegal, essa elite precisa sustentar não só politicamente, como sustentou,

mas ela precisa criar as condições sociais, até mesmo logísticas,

para que esse comércio aconteça a despeito da ilegalidade.

Então, a gente pode dizer com certa tranquilidade que os 800 mil africanos que chegaram aqui,

eles só chegaram porque uma fração, talvez hegemônica, ou seja, a fração mais importante da elite brasileira,

criou as condições políticas, sociais, econômicas e infraestruturais para que esse tráfico acontecesse.

E o que a gente vê, de certa forma, na própria produção da história brasileira,

é uma certa construção de uma isenção sobre esses indivíduos,

como se eles tivessem sido também vítimas, eles, dos traficantes.

Mas eles não eram vítimas, não só porque...

Mas espera aí que ainda está faltando gente nessa equação.

Não era só o Estado brasileiro, os políticos, não eram só os traficantes, nem eram só as elites.

A escravidão era não só um ativo econômico, mas ela era uma instituição compartilhada por boa parte da sociedade.

Aqueles que não eram senhores de escravo queriam ser.

Então, nos anos 1830, 1840, o brasileiro comum também apoiava o tráfico de africanos.

Ele não via algo maléfico, ele não via problema moral, humanitário, naquele comércio.

O buraco é muito mais embaixo.

É mais fácil a gente pensar numa história com um grande vilão, ou com os grandes vilões.

Mas a realidade não costuma ser tão simples assim.

A fotografia da sociedade brasileira como um todo é bem mais feia do que se quer admitir.

Esse tráfico só se manteve clandestino em operação porque houve um amplo acordo nacional para que ele continuasse existindo.

Um grande acordo nacional.

Então, por exemplo, José e Joaquim Breves montaram fazendas litorâneas para articular o tráfico.

Houve a participação direta, diretiva das autoridades, que por vezes eram as próprias autoridades dos fortes dessas praias,

que faziam o recebimento dos africanos. É algo assim inacreditável.

Os irmãos Breves tinham essas duas fazendas gigantescas, longe da corte,

montadas especificamente para receber esses navios ilegais e para fazer a engorda dos escravizados antes de eles serem distribuídos.

De vez em quando, o governo brasileiro fazia uma ou outra apreensão de navio só para fingir que estava cumprindo a lei.

Para inglês ver.

E numa dessas operações, apreenderam o barco União Feliz, do Joaquim,

aquele mesmo que tinha feito a mudança da ex-amante do Pedro I.

Durante todo esse período, os irmãos Breves continuaram super próximos do poder e aumentando a influência política.

Eles só se tornaram comendadores, por exemplo, no fim dos anos 40, quando já estavam contrabandeando há quase 20 anos.

Nos anos 40 também, cada um deles chegou a acumular, ao mesmo tempo, as funções de deputado provincial, vereador e juiz de paz dos seus municípios.

Sabe quem era incumbido no interior de decidir sobre os navios suspeitos de contrabando?

O juiz de paz.

Era a raposa tomando conta do galinheiro.

A audácia em burlar a fiscalização, isso era muito próprio do Joaquim Breves.

Ele não tinha medo de nada, ele não se importava.

A própria Restinga da Marambaia foi adquirida pelo Joaquim para servir de recepção de mão de obra escravizada.

Então o Joaquim tinha embarcações que trafegavam continuamente entre o litoral e a ponta da Restinga, que é a ilha da Marambaia.

E ali na ilha ele tinha uma grande senzala e o navio tumbeiro vinha da África e desembarcava a carga na Marambaia, a carga humana.

Aqui de novo o Aloísio, advogado e pesquisador que a gente ouviu no começo do episódio.

Aliás, já faz tanto tempo que ele se apresentou que eu vou colocar de novo.

Meu nome é Aloísio Clemente Maria Infante de Jesus Breves Beiler.

Em alguns locais, como por exemplo Piraí, era comum o garoto,

tinha um professor que ele costumava dizer o seguinte,

abram alas que está entrando a nobreza de Piraí.

Eu não entendia muito aquilo, mas era o que ele usava.

Tempos depois, na faculdade, algumas pessoas vinham falar comigo e falavam,

você é Breves, da família Breves? Sou.

Eu descendo do Joaquim Breves, eu sou a quinta geração.

Uma vez uma jornalista me fez essa pergunta,

como você consegue viver carregando um nome tão pesado quanto esse?

A corda é grande, Jorge? Se a corda não for grande, foi pouca.

Já está encalhando.

Já está encalhando?

Está calçado, Jorge? Olha o bagre, rapaz. Olha o bagre.

É, porque aqui é rasinho assim, né?

É, aqui é rasinho.

E isso aqui era um caminho para a fazenda?

Sim.

Desembarcava ali no mar?

Desembarcava ali, teve as ruínas do cais.

Esta é a Vânia Guerra.

Aqui são as ruínas da fazenda de Engorda, gente.

Como vocês estão vendo, só tem as pilastras.

A gente foi até a Ilha da Marambaia, que fica na ponta da Restinga de Marambaia.

De carro fica a umas duas horas do rio, depois mais uns 30, 40 minutos de barco.

Aqui era a senzala?

Aqui era a senzala.

Isso aqui é barro cozido, olha.

Isso é barro cozido, olha que coisa linda.

Esse tijolo ainda há pouco tempo estava se fazendo aqui.

Isso aqui é trabalho de mazimbas, de engenheiros mazimbas.

Dentro dela está abraçado o fogão, que é o fogão que faz a cozinha.

Lá está abraçado o fogão, que era feito o zangüento,

que era feita a comida dos negros, que era feito o gemédio.

E um dos gemédios muito importantes que ficou aqui para a gente foi a arueira,

que ainda hoje o povo usa vários tipos de ervas.

Isso é tudo o que restou do que um dia foi a senzala de uma dessas fazendas dos Irmãos Breves,

que funcionava especificamente para receber os navios no período do contrabando.

Ali tem um quilombo, o quilombo da Ilha da Marambaia,

formado por remanescentes daquelas pessoas trazidas para o Brasil no período do contrabando.

Nós estamos aqui na Praia do Sino.

Os navios se aportavam ali, atrás dessa ilha.

E dali que os negros eram tirados e levados para a fazenda durante a escravidão por uma canoa.

Esses negros que iam por Mazém, eles vinham de lado do continente africano para cá.

Aqui eles ficavam em quarentena, porque aí a fazenda daqui, que antes era de café,

passou a ser de engordar negros roubados.

Aqui eles engordavam, se recuperavam e eram vendidos ou reaproveitados nas fazendas.

Então, toda a comunidade quilombola do litoral sul-fluminense do Rio,

todos eles passaram por aqui, são todos nossos parentes.

Quando estive na Marambaia, eu falei, calma, eu não sou a reencarnação do Comentador Breves.

Quer dizer, o nome causa espanto.

Aqui de novo o Aloísio Breves, descendente do Joaquim Breves.

Eu vejo isso, muito isso, no interior do Estado.

Uma espécie de patriarcado ainda dominante, aquela coisa detestável de sabe com quem está falando.

E às vezes eu sou até tratado assim em alguns lugares.

Você, por conta do nome, é livrado de qualquer obstáculo.

É uma coisa curiosa, o que o Brasil ainda produz.

Lembra que ele estava contando que uma jornalista perguntou para ele uma vez

como você consegue viver carregando um nome tão pesado quanto esse?

Eu falei, olha, eu não vivi aquela época, não vivi aquela época.

Eu sou da família, porque nasci na família, mas eu não convivi com o Joaquim,

não compartilho com as ideias escravistas dele, não compartilho com nada disso.

Mas eu sou produto disso.

O que eu faço é divulgar essa história.

Por quê?

É uma história tão fantástica e tão bizarra que ela merece ser contada.

Isso faz parte da história do Brasil.

O Joaquim participou do Grip de Ipiranga, o Joaquim foi político,

considerado por muitos, foi o homem mais rico do Brasil num determinado período,

o rei do café.

O Aloysio tem um site em que ele reuniu tudo o que pesquisou sobre a própria família,

inclusive esses muitos esqueletos no armário.

O endereço é brevescafétudojunto.net.

Eu acho que isso é para ser divulgado, é para ser criticado,

ser objeto de estudo, ser aprofundado para que as pessoas

Eu já ouvi de pessoas que o breves era bom porque ele tratava os escravos de maneira diferente.

Bom, se era escravo dele, já é ruim.

Porque tem relatos dele levar os escravos ao tronco e mandar espancar,

relatos assim muito ruins, marcava as pessoas.

Imagina se cada família brasileira que enriqueceu com a escravidão

também pesquisasse sobre o breves.

Imagina se cada família brasileira que enriqueceu com a escravidão

também pesquisasse e divulgasse essa história.

Tem muita informação que está guardada em porão, em armário, em baú.

Informação que poderia levar pessoas negras a descobrirem mais sobre as suas histórias,

as suas famílias.

Pessoas que, como eu, não têm direito a saber de onde os seus antepassados vieram.

O Brasil tem uma grande dificuldade em contar a sua história.

Então, me afeta o nome, mas não afeta o meu bom senso e o meu discernimento.

A história tem que ser contada, tem que ser avaliada, tem que ser descrita.

Porque a pior coisa é você não conhecer a sua história.

E no caso da família breve, a família breve tem história para contar.

Tem explicações a dar, tem histórias a contar.

Tem grandes exemplos, é óbvio que tem, de benemerência, de acolhimento.

Mas tem todo esse lado obscuro da escravidão,

que foi um modelo adotado pelo Brasil para subsistir e para prosperar na sua riqueza.

E olha, eu vou dizer aqui de novo.

Não foram só os tradicionais brasileiros que foram assim.

E olha, eu vou dizer aqui de novo.

Não foram só os traficantes, os contrabandistas, que enriqueceram com a escravidão.

Em 1850, o contrabando negreiro finalmente teve fim.

Foi aprovada uma nova lei, que acabou conhecida como a Lei Eusébio de Queiroz.

E a gente vai falar mais sobre ela em outro episódio.

O que importa dizer agora aqui é que o governo, enfim, endureceu a fiscalização.

E não podia mais chegar navio com africanos sequestrados.

Com o fim do contrabando, todo esse dinheiro acabou ficando ocioso no mercado.

Porque o tráfico era um negócio de muitos investidores.

Daí rolou uma febre consumista e a boa gente rica brasileira começou a importar,

mais do que nunca, tudo quanto é coisa da Europa.

Perfume, roupa, arma de fogo, piano.

Houve uma superabundância de dinheiro, especialmente no Sudeste,

que acabou assumindo ainda mais protagonismo por causa da explosão do café.

E essa superabundância resultou no ressurgimento do Banco do Brasil,

que tinha sido fechado quando o Dom João VI foi embora, levando todo o dinheiro.

Nos anos 50, o Visconde de Mauá, grande empreendedor brasileiro,

que já tinha ganhado bastante dinheiro fabricando navios que eram usados para o tráfico,

ah sim, e quem fabricava eram trabalhadores assalariados e trabalhadores escravizados.

Bom, mas o Visconde de Mauá liderou um grupo de empresários

que não tinha onde colocar esse dinheiro ocioso.

E essa turma criou um banco privado, que depois se fundiu com outro

e foi transformado no Banco Oficial do Império, hoje o Banco do Brasil.

Desde a invasão pelos portugueses, em 1500,

foi a escravidão que gerou todas as riquezas do Brasil.

E eu vou dizer isso de novo, todo o setor da economia contava com trabalho escravo.

O sujeito podia ter uma lojinha, ter um escravizado e trabalhar lado a lado com ele.

Uma enorme diferença que um recebia e o outro não,

fora tudo mais o que está relacionado a não ter a própria liberdade, né?

Pensar numa riqueza construída antes da abolição

é pensar numa riqueza conquistada por meio da crueldade.

E uma riqueza que foi deixada como herança para os descendentes desses senhores de escravos.

E mesmo pensando depois da abolição,

qual família rica brasileira não se beneficiou dos privilégios

e das relações sociais e de trabalho sedimentadas por uma sociedade

que por mais de 300 anos escravizou um grupo, o das pessoas negras e indígenas,

e durante todo esse período impediu a ascensão desse grupo.

A escravidão acabou, mas o racismo continuou na república,

sempre como uma escolha política,

para que um grupo continuasse a ser subjugado pelo outro,

para a continuidade de quem sempre esteve no poder.

Qual pessoa branca rica, mesmo às saídas do nada, a self-made,

não se beneficiou e se beneficia até hoje dessas relações?

E qual pessoa branca, mesmo que não é rica,

não acaba se beneficiando das diferenças abissais de oportunidades

que uma sociedade estruturalmente racista oferece para sua população?

Uma pesquisa divulgada recentemente mostra que trabalhadores negros

ainda ganham menos que os brancos, e que além da diferença salarial,

para os negros alcançar altos postos também é mais difícil.

Um estudo apresentado hoje em São Paulo

mostra que mesmo com o ensino superior,

a diferença salarial entre trabalhadores brancos e negros chega a 29%.

Na história do Brasil, enquanto os brancos podiam brincar de empresário,

de investidor, de empreendedor,

os negros tinham de lutar para sobreviver.

E ainda é assim.

Saber de toda essa luta do meu avô, do meu bisavô,

para a gente eles estão vivos, perderam o corpo,

e estão vivos.

Então, assim, a gente não podia decepcionar.

Porque a luta deles, essa era a nossa herança,

era a nossa herança e tínhamos que abraçar.

E aí a gente saiu brigando, lutando com as forças que tinham,

com as armas que tinha.

Mesmo depois da lei de 1850,

os irmãos breves continuaram a contrabandear pessoas ilegalmente escravizadas.

Houve pelo menos quatro viagens que foram flagradas pelas autoridades.

Por uma ironia do destino, foi essa sanha de não largar o osso

que teria impedido os dois de subirem ainda mais na escala da nobreza brasileira.

Nenhum deles jamais chegou a receber o título de barão.

Estacionaram em encomendador.

Em 1953, o governo fez uma operação numa fazenda do José de Sousa Breves

para encontrar africanos contrabandeados.

O José enviou uma carta para o Eusébio de Queiroz,

que nessa época era ministro da Justiça e comandava a fiscalização da Lei de 50.

O José estava com medo de que o governo fosse libertar todo mundo

que tinha chegado desde 1931, desde o início da ilegalidade.

E o Eusébio disse para ele que podia ficar tranquilo, que

qualquer busca que se dê é para procurar os negros agora importados

e nunca para entender com o passado.

Isso é uma coisa muito importante, porque a última geração de escravo no Brasil

é uma geração basicamente de escravos ilegais, aquelas pessoas juridicamente eram livres.

Então a escravidão por si já é um horror, é uma barbárie, é uma aberração.

Imagine uma escravidão que juridicamente é ilegal pelas leis do país escravizador.

Aqui de novo o Tiago Campos Pessoa.

Isso é uma coisa que eu acho que já ficou claro, mas não custa nada repetir.

Cada pessoa africana que foi trazida de algum país ao norte do Equador desde 1818

e todas as que foram trazidas desde 1931,

cada uma dessas quase 800 mil pessoas mais os seus descendentes,

um número que infelizmente a gente não consegue saber qual é,

cada uma dessas pessoas foi escravizada ilegalmente.

Era contra a lei, um crime segundo as leis do Brasil.

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, que é um grande estudioso da nossa história e da escravidão,

ele chama o que aconteceu nesse momento de o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.

Porque houve mais uma vez um grande pacto nacional,

agora para garantir que todas essas pessoas não fossem libertadas,

para evitar rebeliões, para garantir a segurança de posse,

para evitar que as pessoas não fossem libertadas,

para evitar rebeliões, para garantir a segurança de posse dos proprietários,

os ricos e poderosos, a classe política, toda essa boa gente brasileira,

mais uma vez se calou.

E a escravidão continuou por mais 38 anos, só terminou em 88.

Para o Luiz Felipe de Alencastro, a última geração de escravizados no Brasil

era formada em sua esmagadora maioria por indivíduos livres, sequestrados e ilegalmente escravizados.

O pecado original do Brasil.

E tem outra coisa, a lei de 31 tipificava quem continuasse a contrabandear como sequestrador,

um crime previsto no código criminal da época.

E o que aconteceu na prática com esses contrabandistas?

Anistia.

Um exemplo perfeito disso é o do Eusebio de Queiroz,

o ministro da Justiça, o representante do Império do Brasil,

estava dizendo para um desses criminosos,

ó, a partir de agora você tem que parar com isso.

O que passou, passou.

É muito emblemático essa passagem, não se entender com o passado.

Nosso país, a nossa sociedade, até hoje não se entendeu com o seu passado.

Quando o Eusebio de Queiroz disse isso, o que ele estava querendo dizer é o seguinte,

olha, os africanos que entraram antes da lei de 1850,

da segunda lei antitráfico, da lei Eusebio de Queiroz,

eles vão permanecer na escravidão.

E ele diz isso porque ele está mirando a elite imperial

que tem boa parte dos seus escravos africanos ilegalmente importados.

Quantas vezes na história do Brasil o país teve a chance de se entender com o passado

e escolheu não fazer isso?

Foi assim em 1850?

Foi assim com a abolição que veio sem compensação nenhuma?

Foi assim com a ditadura militar?

Vai ser assim até quando?

Para o nosso futuro, eu quero que essas coisas sejam mudadas,

que as pessoas agora que têm condições de saber,

têm condições de estudar, de compreender,

e aí que faça melhor para que não fique mais ninguém de fora.

Para que ninguém perca de conviver com a herança que temos.

Porque isso é a nossa herança.

E também de compreender que a resistência vai ser o ponto crucial da nossa herança.

A herança nossa é a resistência.

O projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga.

O podcast é produzido pela Rádio Novelo.

O nosso site projetoquirino.com.br

reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

E eu te convido a conferir também todo o material do projeto Quirino

que está sendo publicado pela revista Piauí,

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio,

Rafael Domingos Oliveira, Yasmin Santos e Angélica Paulo,

que também fez a produção.

A edição é do Luca Mendes e a sonorização da Júlia Matos.

A finalização da Pipoca Sound.

A checagem é do Gilberto Porcidônio e a música original do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital, Bia Ribeiro.

A identidade visual é do Draco Imagem.

Os transcritores das entrevistas foram Guilherme Póvoas e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound com trabalhos técnicos do João Muniz.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe, Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe,

com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história, Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva, Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ISPIS,

Instituto Sincronicidade para a Interação Social.

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação, Thiago Rogero.

Este episódio usou áudios da TV Globo e do SBT.

Agradecimentos a Bárbara Guerra e ao Jorge Moreira.

Até o próximo!