Pretender o Mal - 03
A doutrina
O número de diferentes formulações da DDE não é muito inferior ao número de artigos e capítulos de livros sobre o assunto. E muitas vezes não é claro se as diferenças de formulação são meramente terminológicas ou traduzem divergências substantivas. Seja como for, é sempre suposto que a doutrina se aplica em contextos em que o agente prevê que ao agir de uma certa maneira produzirá pelo menos um bom e um mau efeito. A DDE procura determinar a permissividade de agir dessa maneira, apresentando-se quase sempre como um conjunto de condições para ser permissível produzir o mau efeito. Numa tentativa de formular a doutrina de um modo fortemente representativo, podemos dizer que segundo esta é permissível produzir o mau efeito se e apenas se:
(1) O acto em si não é errado.
(2) Só o bom efeito é pretendido.
(3) O mau efeito não é pretendido enquanto meio para o bom efeito.
(4) O bom efeito é suficientemente bom quando comparado com o mau, e não há uma maneira melhor de o produzir.
Antes de examinarmos mais detalhadamente a estrutura e o conteúdo da DDE, vejamos como esta se apresenta como uma solução para o problema do trólei. Em ambas as situações acima descritas o bom e o mau efeito correspondem, respectivamente, ao salvamento de cinco pessoas e à morte de uma. É fácil perceber como um defensor da doutrina pode mostrar que no Trólei a conduta do agente satisfaz as quatro condições: em si o seu acto (desviar um trólei para outra linha) não tem nada de errado; o condutor tem apenas a intenção de produzir o bom efeito; o mau efeito do acto, embora previsto pelo agente, não é pretendido nem como meio para o bom; por fim, o bom efeito é suficientemente bom para compensar o mau e não há uma maneira melhor (desviar o trólei para uma linha desocupada, por exemplo) de o produzir. Já no Transplante, basta considerar a condição (3) para revelar a impermissividade da conduta do agente à luz da doutrina: o mau efeito, além de previsto pelo cirurgião, é pretendido enquanto meio para o bem a alcançar. O defensor do duplo efeito encontra aqui a diferença relevante entre os dois casos que explica as nossas intuições morais.
A condição (3) tem permanecido sempre no centro do debate sobre a doutrina. Baseia-se na distinção entre intenção e previsão, mais precisamente entre dois tipos de efeitos previstos das acções: aqueles que o agente pretende estritamente que se verifiquem e aqueles que são meramente previstos pelo agente. Esta distinção parece captar claramente certas diferenças bem reais — posso fazer barulho sabendo que isso vai incomodar os vizinhos, embora tencione apenas exercitar-me com a bateria, e isto é diferente de fazer barulho para os incomodar. Por vezes, a distinção apresenta-se numa outra terminologia que remonta a Bentham: distingue-se a intenção directa da intenção oblíqua ou indirecta. No entanto, esta terminologia é enganadora, pois no mínimo é estranho dizer que ao tocar bateria pretendo oblíqua ou indirectamente incomodar os vizinhos.
Mas bem pior é dizer, como sucede com uma certa frequência, que nos casos que a DDE discrimina positivamente o agente se limita a «permitir» a ocorrência do mau efeito. Pode-se dizer que o condutor do trólei não matou o trabalhador: limitou-se a permitir a sua morte. Gera-se assim uma confusão grave, pois sobrepõe-se à distinção intenção/previsão uma outra distinção muito debatida na filosofia moral: a distinção entre fazer algo acontecer e permitir que algo aconteça.
É óbvio que as duas distinções não coincidem: pode-se matar sem ter a intenção de o fazer, como o condutor do trólei, e o cirurgião poderia antes deixar morrer deliberadamente o paciente para depois recolher os seus órgãos. Nesta versão alternativa do Transplante a DDE produziria o mesmo veredicto: ao permitir o mau efeito de modo a produzir o bom, o cirurgião estaria ainda a ir contra a condição (3), ou seja, estaria ainda a comportar-se pretendendo a morte do paciente enquanto meio para salvar os outros.1
1 Sobre a confusão entre as duas distinções, veja-se Foot (1967: 149), Quinn (1989: 32), Marquis (1991: 157-9) e Bennett (1995: 204).