Corcovado, O ARRANJO #5 (English subtitles)
O primeiro encontro de Elis Regina e Tom Jobim foi em um estúdio do Rio de Janeiro
em julho de 1964 e não foi nada promissor
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é o canal O ARRANJO
Seja bem-vindo
Elis tinha recém-chegado no Rio vindo de Porto Alegre a sua cidade natal
Ela estava fazendo teste para gravar o disco Pobre Menina Rica,
com músicas de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes
O arranjador do disco, Tom Jobim,
estava selecionando uma cantora para representar o papel de pobre menina rica no disco
Elis, então com 19 anos, não impressionou Tom Jobim
e ela não foi selecionada
Na verdade Tom já tinha outra cantora em vista dulce nunes então mulher do seu
Então mulher do seu amigo, o pianista Bené Nunes
que efetivamente gravou o disco
Mas dez anos depois, finalmente se juntaram
para fazer um disco antológico na história da música brasileira, Elis & Tom Em dez anos muita coisa tinha mudado
Elis já era maior cantora do Brasil
E Tom não tinha muito trabalho no Brasil,
as gravadoras locais não queriam bancar a gravação dos seus discos
então ele passou na maior parte desses 10 anos morando nos EUA
Um dos inventores desse novo som, Antônio Carlos Jobim
A gravadora da Elis, a Philips, queria comemorar os 10 anos de carreira dela com um disco memorável
Os principais executivos da gravadora pensaram grande
Reunir o maior compositor do Brasil em dueto com a maior cantora do Brasil
Tom morava em Los Angeles a gravação teria que ser feita lá
E como produtor escolheram a Aloysio de Oliveira,
parceiro de Tom Jobim em algumas músicas, como Dindi e Inútil Paisagem
E ele, Alysio de Oliveira, seria o responsável por apresentar o projeto ao Tom
A estratégia de Aloysio para apresentar o projeto ao Tom era ousada:
Chegar com Elis e Cesar em Los Angeles e fazer a proposta pessoalmente pro Tom Jobim
Ele avisou que chegariam às sete da manhã
e Tom se prontificou a buscá-los no aeroporto
O Cesar, Cesar Camargo Mariano, era o arranjador e marido de Elis
e um músico consagrado no Brasil
Cesar conta que ele se surpreenderam quando saíram do avião
e deram de cara com Tom Jobim vestido à la Humphrey Bogart, de capa e com uma rosa na mão para Elis
e convidando o grupo para tomar café da manhã na casa dele
Conversa vai, conversa vem, e nada do Aloysio falar sobre o projeto
Até que o Tom solta frase: então o que vieram fazer aqui, um show?
Ele realmente não sabia de nada!
Aloysio começa a explicar o projeto do disco:
eles vieram aqui gravar um disco com as suas músicas e querem a sua participação
Tom tomou um susto
"Aloysio, um disco a maior cantora do Brasil... isso é muita responsabilidade ou irresponsabilidade"
Mas começou a gostar da ideia, a pensar em quais músicas seriam gravadas
e perguntou para o Alysio: e quem vai ser o arranjador?
O Cesar
Tom deu uma resposta que fez Cesar ter vontade de pegar um táxi pro aeroporto
e voltar na mesma hora para o Brasil
Você? Aqui o lápis é americano,
o papel é americano, os músicos são americanos,
Você com as suas pobres notinhas brasileiras, não vai dar certo
Aí ele falou com a mulher: "Teresa, liga pro Claus Ogerman!" Ninguém atendeu...
"Liga pro Jhonny Mandel!" Não conseguiu falar...
"Liga pro Deon Sebesky, pro Dave Grusin! Nada..."
Com muito tato, Aloysio explicou que Cesar era o arranjador de Elis
e ela tava muito acostumada com o som dele e do grupo deles
e afinal de contas o disco era da Elis, com participação do Tom
Para quebrar o gelo, Cesar tirou o paletó e sentou no piano
Tom pegou o violão e Elis começou a cantar
Em pouco tempo definiram o repertório
agora era só o Cesar começar a escrever os arranjos
Corcovado foi o primeiro arranjo que Cesar escreveu para o disco
Era um jovem mestre trabalhando em uma música do seu ídolo
para o seu ídolo gravar
Tom era muito bom letrista: Wave, Águas de março,
Triste, Fotografia, Luisa, todos clássicos com letra dele
Corcovado também
É uma das melodias mais minimalistas do Tom
apoiada basicamente em sequência repetida de duas notas
em intervalos de segunda
Intervalos de segunda são, em linhas gerais,
entre notas vizinhas: dó para ré, ré para mi,
sol para lá e etc.
O álbum Elis & Tom foi todo gravado e mixado em dois dias de estúdio Mas isso só foi possível porque Elis era uma cantora muito acima da média
Ela gravava ao vivo, junto com a orquestra
Foram 15 faixas gravadas e uma descartada: Bonita, com letra em inglês,
porque Elis não se sentiu confortável em cantar com sotaque
Cesar distribuiu a gravação assim:
No primeiro dia gravaram os arranjos camerísticos, sem a base da banda da Elis,
com naipe de cordas e flauta
No segundo dia eram as faixas com a banda da Elis
Tom se incomodou com os instrumentos elétricos dos jovens músicos,
mas quando eles começaram a tocar ele relaxou, eram grandes músicos
Hélio Delmiro na guitarra, Luizão Maia no baixo e Paulo Braga na bateria
Corcovado era do primeiro dia de gravação, dos arranjos camerísticos,
regidos pelo maestro Bill Hitchcock
Cesar não pode reger,
porque o sindicato dos músicos norte-americanos não permitiam um maestro que não fosse filiado ao sindicato
Cesar escreveu para um quarteto de flautas,
sendo duas em dó e duas em sol,
além de um sexteto de cordas
Dois violinos, duas violas, um violoncelo e um contrabaixo
Tom gravou ao vivo com a orquestra o violão e depois colocou piano por cima da base já gravada
A forma de corcovado é ABAC,
sendo que os As são sutilmente diferentes
Nessa gravação específica a música acontece duas vezes,
mas não é cantada o tempo todo
Na repetição começa uma parte instrumental,
a voz só volta no último C
Tom Jobim era um excepcional arranjador,
normalmente mesmo quando outro músico assinava o arranjo,
as frases, as introduções, os contracantos eram do Tom
Nessa música, na parte instrumental, tem um desenvolvimento que não havia sido gravado até então
Ele é muito, mas muito jobiniano
Pode ser que seja do Cesar Camargo Mariano e, se for,
ele com certeza escreveu algo que o Tom assinaria,
tanto que o Tom tocou assim até o final da sua vida
A introdução começa com uma frase quase tão conhecida quanto a melodia da música,
nas duas faltas em sol em uníssono, ou seja, tocando a mesma nota
Com uma cama de cordas no grave, a melodia passa para flautas em dó
No primeiro A, agora com violão, violinos e violas estão em uníssono numa frase descendente cromática,
ou seja, descendo de meio em meio tom
No B saem as violas, e quem dobra agora com os violinos são as flautas em sol
Cesar Mariano cria um momento de contraste muito interessante agora:
vão entrar todos os instrumentos da orquestra ao mesmo tempo
Notem que os violinos dobram as falta em dó, ou seja, tocam as mesmas notas,
e as violas dobram as faltas em sol
Isso dá corpo para massa sonora, mesmo com grupo reduzido de instrumentos
Entra o piano no estilo jobiniano de one finger piano, quase sempre uma nota por vez,
como vimos no programa sobre Garota de Ipanema
Agora o uníssono das flautas em sol, numa frase cromática descendente
Agora os violinos estão em oitavas, sendo dobrados pelas flautas em dó
um recurso muito usado, que dá corpo e definição para a frase
O uníssono agora é das quatro flautas no grave, um timbre belíssimo
As flautas começam a melodia na parte A instrumental,
e os violinos e as violas fazem uma segunda voz mais aguda que é também um contracanto
E um solo do cello para passagem para a parte B,
com solo de piano e cama harmônica de cordas
Agora aquela parte instrumental que eu comentei, muito jobiniana,
com a melodia nas flautas em dó e nas vozes da Elis e do Tom
Tom vai entrar cantando em dueto com Elis numa segunda voz sensacional
Ao invés de fazer uma frase paralela à melodia, ou seja,
quando a melodia sobe a segunda voz vai junto, num movimento paralelo,
Tom aqui cria um movimento contrário
A melodia da música é descendente e a segunda voz é ascendente,
notem o efeito e a segunda menor, intervalo de meio tom, na última nota
A coda cita o início da melodia, mas com uma resolução surpreendente,
com um acorde meio tom abaixo
As terças dos violinos são dobradas quando no graves com as faltas em sol,
e quando no agudo com as flautas em dó
Bom, eu sou Flavio Mendes, esse é O ARRANJO,
se você curtiu dá um like, se inscreve no canal e até a próxima, muito obrigado
Aí no final do dia a Elis me acorda e fala: o Tom quer falar com você
Oi! Aí ele diz assim: olha aqui, ô Mariano,
Eu queria dizer um negócio pra você, eu estou acostumado
a tomar banho de banheira, aquela água parada,
a sujeira do meu corpo, aquela mesma temperatura,
eu percebo quando a temperatura está baixando
mas aquela água parada
E vocês estão acostumados a tomar banho de chuveiro,
água fresca caindo na cabeça o tempo todo
Entendeu, Mariano?
Isso foi uma lição para mim, inclusive,
ele não tava pedindo desculpa,
ele tava se abrindo profundamente
Foi um negócio muito legal pra mim
E aí a gente terminou o projeto