Praxe e tradições académicas portuguesas
Olá e bem vindos de volta ao Portuguese With Leo! Antes de começar este episódio, quero agradecer às
pessoas que doaram nas últimas semanas, que foram o Pierre Docquir, o Ángel Vásquez, o Derek Smitt,
que doou pela segunda vez, e uma outra pessoa que preferiu manter-se anónima. Muito obrigado
a todos vocês pela vossa generosidade! Os restantes de vocês que quiserem ajudar o
projeto Portuguese With Leo, podem fazer doações através do link na descrição deste episódio.
Há uns episódios atrás falei sobre o Fado, que é o estilo musical mais importante
para Portugal e para os portugueses. E quando falei sobre o Fado de Coimbra,
que é o estilo de Fado que está relacionado com os estudantes universitários,
prometi que no futuro iria falar sobre as outras tradições universitárias de Portugal.
Pois bem, hoje é finalmente o dia em que falo sobre esse tema,
sobre as tradições universitárias portuguesas! Portugal tem tradições universitárias muito
antigas e muito interessantes, tão interessantes que até serviram de inspiração para a escritora
britânica J.K. Rowling quando ela escreveu os livros do Harry Potter.
E como é que as tradições universitárias portuguesas inspiraram a J.K. Rowling? Vejam o episódio até
ao fim para ficarem a saber! E já agora, antes de começarmos, não se esqueçam de
deixar um gosto no vídeo e de subscrever ao canal. Já o fizeram? Então vamos começar!
Para começar a falar deste tema, temos de aprender uma palavra muito importante e que eu vou usar
muito no episódio de hoje: a palavra praxe. A palavra “praxe” tem origem na palavra praxis,
que vem do Grego antigo e que também foi adotada pelo Latim e que significa prática ou atividade.
Hoje em dia, o termo “praxe académica” é o nome que damos a um ritual de iniciação,
que normalmente é feito no primeiro ano de universidade e cujo objetivo
é integrar os alunos do primeiro ano, que são conhecidos como “caloiros”, e transmitir-lhes
os valores e tradições da Universidade. Em inglês isto é conhecido como hazing.
Normalmente as atividades da praxe ou “atividades praxísticas” são organizadas pelos alunos mais
velhos da Universidade, seguindo uma hierarquia de poder dos alunos mais antigos para os alunos
mais novos e respeitando um conjunto de regras chamado “código de praxe”.
Cada Universidade tem o seu código de praxe e as suas tradições, mas no geral as atividades
da praxe são muito parecidas entre as diferentes Universidades de Portugal.
Estas atividades costumam ser divertidas e costumam envolver jogos de grupo,
desafios e teambuilding para ajudar a integrar os caloiros, ajudá-los a criar novas amizades
e obrigá-los a sair da sua zona de conforto. No entanto, existe alguma controvérsia no tema
da praxe porque muitas vezes os alunos mais velhos abusam do seu poder e algumas das atividades
chegam a ser humilhantes e até mesmo perigosas. Mas não se preocupem. Isto são situações muito
raras e excepcionais e a verdade é que a praxe tem um grande papel em ajudar a integrar os
caloiros e ajudá-los a criar novas amizades. Agora vou falar um pouco sobre a história da
praxe e em seguida vou falar sobre algumas curiosidades, entre as quais como é que a
praxe influenciou a saga do Harry Potter. Então, de onde é que a praxe surgiu? Para
falarmos sobre a história da praxe, temos de voltar mais de setecentos (700) anos atrás no
tempo para o final do século treze (XIII), quando em Portugal foi fundada a primeira
universidade, a Universidade de Coimbra. Foi a partir destes tempos que se começaram a
criar as primeiras tradições académicas e rituais de recepção aos novos alunos, e estas tradições e
rituais foram evoluindo ao longo dos séculos. Sabe-se muito pouco sobre as tradições
académicas que existiam nesta altura, apenas se sabe que existiam rituais de
iniciação entre os estudantes mais velhos e os estudantes mais novos da Universidade.
Só muito mais tarde, já no século dezoito (XVIII) é que é feita a primeira referência
oficial a estas tradições, quando o rei desta altura, o Rei D. João V, declara o seguinte:
“Mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro
com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos.”
Ou seja, o rei decretou que, se os estudantes mais velhos se metessem com os mais novos,
seriam expulsos da Universidade. E aqui usei uma expressão que se usa
muito na linguagem do dia a dia: meter-se com alguém. Meter-se com alguém significa
provocar ou gozar com outra pessoa, e tanto pode ser feito de forma brincalhona e sem
más intenções, como pode ser feito com a intenção de chatear e incomodar a outra
pessoa. Em inglês diz-se to mess with someone. Ora, com esta declaração, o Rei D. João V
proíbe todas estas tradições de iniciação da Universidade de Coimbra, proíbe que os
alunos mais velhos se metam com os mais novos. Esta foi a primeira vez que a praxe foi proibida,
mas não seria a última. Sabemos que esta proibição não durou muito tempo, porque no século seguinte,
o século dezanove (XIX), continuavam a haver estes rituais e tradições,
e até foi neste século que se começou a utilizar a palavra “praxe” para designar estas tradições.
As atividades da praxe eram polémicas e causavam divisões entre as pessoas. Havia as que estavam
a favor da praxe e as que estavam contra a praxe, e em 1910, quando em Portugal acabou
a Monarquia e se implantou a República, a praxe foi proibida pela segunda vez.
Mas esta proibição também não durou muito e a praxe voltou a surgir nove (9) anos mais tarde,
em mil novecentos e dezanove (1919). Desde esta altura, a tradição da praxe começou
a misturar-se com a política, e mais tarde, durante o regime do Estado Novo, a praxe até
era usada como forma de intimidar os novos alunos. O regime do Estado Novo foi o regime de ditadura
fascista de António de Oliveira Salazar, que durou desde 1933 até 1974. Já falei um pouco sobre este
regime no episódio sobre as férias em Portugal, e no futuro vou dedicar um episódio inteiro a
falar disto. Mas para já, ficam a saber que durante o regime do Estado Novo as praxes
eram utilizadas como instrumento de opressão e por isso, nos anos sessenta (60), os estudantes
aboliram as praxes como forma de protesto. Ou seja, aqui temos a terceira vez que a
praxe é abolida, mas desta vez foram os próprios alunos que o fizeram como
forma de se manifestar contra o fascismo. Duas décadas mais tarde, nos anos oitenta (80),
já depois da revolução que acabou com o regime do Estado Novo, volta a surgir praxe,
e tem-se mantido desde então até aos dias de hoje. Esta última versão da praxe académica já não
está relacionada com a política e é apenas uma forma de manter vivas as tradições académicas
das diferentes Universidades de Portugal. É uma forma de promover a vida social e de ajudar a
integrar os alunos do primeiro ano, os caloiros. E agora vocês estão-se certamente a perguntar:
mas onde é que entra o Harry Potter no meio disto tudo? Pois bem, vou já explicar.
A autora inglesa J.K. Rowling viveu muitos anos em Portugal e viu de perto esta tradição da
praxe. Muitos elementos do mundo do Harry Potter foram inspirados por elementos da
cultura portuguesa e foram as roupas típicas dos estudantes universitários portugueses
que inspiraram as roupas dos estudantes de Hogwarts, no mundo do Harry Potter.
E já agora ficam também a saber que o nome do ditador António de Oliveira Salazar serviu de
inspiração para o personagem Salazar Slytherin. Mas então que roupas típicas são estas de que eu
estou a falar? As roupas de que estou a falar são conhecidas como traje académico, e são as roupas
típicas que os estudantes universitários usam durante as atividades da praxe.
O traje académico é composto por uma camisa branca e o resto das roupas todas negras:
a batina, a gravata, os sapatos e as calças para os rapazes e saias para as raparigas.
E por cima de tudo isto uma capa negra. Os caloiros não podem vestir este traje
no seu primeiro ano, mas se superarem todas as provas da praxe ao longo do ano,
no final eles ganham o direito de vestir o traje e de, nos anos seguintes,
serem eles a praxar os alunos mais novos. Embora hoje em dia a praxe já não esteja
relacionada com a política, continua a ser um tema polémico e muito discutido, e há pessoas que estão
contra e pessoas que estão a favor da praxe. As pessoas que estão contra a praxe normalmente
argumentam que as atividades são humilhantes para os caloiros, muitas vezes perigosas,
e que se promove uma espécie de elite, que são as pessoas que fazem parte da praxe e que há
uma marginalização daqueles que se opõem ou que se recusam a fazer parte da praxe.
As pessoas que estão a favor, por seu lado, argumentam que a praxe é essencial para integrar
os novos estudantes, para criar laços de união e amizade e que é uma tradição muito importante
e com muito significado para os estudantes. Pessoalmente, caso vocês se estejam a perguntar,
eu sou a favor da praxe. Sou a favor porque participar na praxe não é obrigatório,
só participa quem quer, e porque eu, da minha experiência, tenho memórias
muito boas dos meus tempos como caloiro. Eu sou de Lisboa, mas fiz os meus 2 primeiros
anos de faculdade numa outra cidade, chamada Funchal, onde inicialmente eu
não conhecia ninguém, e a praxe foi essencial para me ajudar a integrar e a criar amizades.
É verdade que a praxe teve momentos duros e difíceis e é verdade que fui obrigado a fazer
MUITAS flexões de braços e outras atividades difíceis e desconfortáveis. No entanto, a praxe
também teve muitos momentos muito divertidos e alguns dos meus melhores amigos de sempre
são pessoas que conheci no meu primeiro ano de faculdade e a praxe foi essencial para nos unir.
Espero que tenham gostado deste episódio e que tenham aprendido
um pouco sobre a praxe em Portugal. Como devem imaginar, este ano as coisas
foram muito diferentes e as atividades da praxe foram muito afetadas pela situação que estamos
a viver. Foram criadas regras especiais para as praxes e muitas das atividades que normalmente
se realizam e que envolvem proximidade física tiveram de ser alteradas ou até canceladas.
Muito obrigado por me ouvirem até ao fim e até à próxima!