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Tecnocracia, Tecnocracia #53: O que foi a quebra do sistema Telebrás (1)

Tecnocracia #53: O que foi a quebra do sistema Telebrás (1)

Em outubro de 1861, um sujeito conseguiu criar uma máquina que registrava a voz humana, convertia ela em impulsos elétricos e a repassava a outro terminal por meio de um fio de cobre. No outro terminal, os impulsos eram reconvertidos em voz para chegar aos ouvidos de alguém fisicamente distante do locutor. Era um protótipo de uma tecnologia que hoje chamamos de telefone. Qual é o nome deste sujeito?

Você, provavelmente, com uma ponta de orgulho, puxa da memória e crava o nome associado à invenção do telefone no seu cérebro. Mas é bem provável que você tenha errado. Esse sujeito era o cientista e inventor alemão Johann Philipp Reis.

De novo.

Em 1867 (ou seja, seis anos depois), um norte-americano criou uma máquina capaz de transformar a voz em impulsos elétricos, repassá-los a outro terminal por uma linha de cobre e transformá-los de novo em voz para quem estivesse do outro lado. O nome desse sujeito, por favor?

Agora tem que ser aquele, né? Também não é. Esse é um inventor chamado Daniel Drawbaugh que, entre outras coisas, inventou separadores de moedas, uma lancheira dobrável e ferramentas pneumáticas.

Mais uma vez.

Em 10 de março de 1876 (ou seja, 9 anos depois de Drawbaugh e 15 depois de Philipp Reis), um sujeito nascido na Escócia criou uma máquina que registrava a voz, a transformava em impulsos elétricos, repassava os impulsos por um fio de cobre para terminais adiante e os transformava em voz para a pessoa do outro lado da linha.

Qual é o nome dele? Agora você pode matar no peito: Alexander Graham Bell.

Está confuso(a)? Afinal, o que você aprendeu na escola é que Graham Bell inventou o telefone. Não fique. Se inventar significa ser o primeiro a demonstrar um protótipo funcional de uma nova tecnologia, então Graham Bell não inventou o telefone. Mais importante que isso, porém, é que Graham Bell foi capaz de inventar um mercado para aquele protótipo desenvolvido em seu laboratório, uma coisa que Drawbaugh e Philipp Reis jamais conseguiram, mesmo com tecnologias semelhantes e anos de vantagem.

No setor de tecnologia, nem sempre o primeiro a chegar é quem colhe os melhores frutos. Há na história uma série de empresas que se notabilizaram pelo que eu chamo de síndrome de Junior Baiano: chega atrasado, mas quando chega não deixa espaço para reação. A Microsoft é um excelente exemplo disso: o Windows não foi o primeiro sistema operacional gráfico, nem o Office o primeiro pacote corporativo, nem o Internet Explorer o primeiro navegador. Ainda assim, ela dominou os três setores, a base do seu império durante décadas. Ok, menos o navegador e já faz bem uma década que a teoria não se aplica mais à empresa. Enfim.

Essa invenção simultânea não chega a ser uma imensa novidade — ao longo da história, são vários os episódios em que invenções ou descobertas fundamentais à sociedade estavam sendo criadas ou concluídas ao mesmo tempo por pesquisadores e/ou grupos independentes que não conheciam os trabalhos uns dos outros. Abrimos as primeiras aspas para um livro seminal sobre tecnologia, já indicado aqui, chamado Impérios da comunicação: Do telefone à internet, da AT&T; ao Google, do Tim Wu: “A história da ciência é cheia de exemplos do que o escritor Malcolm Gladwell chama de ‘descobertas simultâneas' — tão cheia que o fenômeno representa a norma, não a exceção. Poucos conhecem hoje o nome de Alfred Russel Wallace, ainda que ele tenha escrito um artigo propondo a teoria da seleção natural em 1858, um ano antes de Charles Darwin ter publicado A Origem das espécies. Leibnitz e Newton desenvolveram cálculo simultaneamente. E em 1610, quatro outros fizeram as mesmas observações lunares que Galileu Galilei.”

Se não é necessariamente a tecnologia, o que garante a dominação de um setor, os bolsos cheios e o nome nos livros de história? No caso do Graham Bell, dois fatores interligados foram essenciais. O primeiro era quem financiou a invenção. Tenha em mente que eram poucos os inventores sérios que não tinham alguma espécie de mecenas por trás financiando a pesquisa e pagando um salário para que o inventor continuasse a tocar a vida enquanto não saísse um produto lucrativo do seu laboratório. Quem financiava Graham Bell era um sujeito chamado Greene Hubbard, que coincidentemente vinha a ser seu sogro. Aí entra o segundo fator, absolutamente fundamental: em 7 de março de 1876, três dias antes de fazer seu protótipo finalmente funcionar, Graham Bell pediu e ganhou o registro de uma patente referente a ele. Essa patente é a pedra fundamental do império que Graham Bell construiu. No ano seguinte, Bell e Hubbard fundaram juntos a Bell Telephone Company.

Patentes são dispositivos legais que protegem o criador de uma nova tecnologia ou produto de aventureiros dispostos a copiar e lucrar com uma tecnologia ou produto alheio. Na teoria, a patente funciona como um incentivo à inventividade: quem cria algo se torna o único detentor do direito de exploração daquilo. A questão é que nem todo inventor está familiarizado com o processo (culpa do inventor) ou patentes acabam virando armas na mão de empresas lutando por uma mercado (a disputa entre Oracle e Google pelo sistema operacional Android há uma década é um exemplo perfeito disso). No caso de Graham Bell, aquela única patente foi capaz de eternizar seu nome como inventor do telefone ao mesmo tempo em que bloqueou a pequena firma criada para explorar o telefone de ser esmagada pelo monopólio da época.

Nenhuma invenção tecnológica é fruto de abiogênese — ou seja, aparece do nada e toma o mercado de assalto. Quem ocupa o trono naquele momento da história vai usar seu peso, seu dinheiro e sua mão de obra para evitar que sua confortável posição seja roubada por uma molecada insolente com ideias e tecnologias novas e melhores. É o fenômeno Cronos na mitologia grega, de que já falei N vezes no Tecnocracia: para não ser substituído, Cronos comia seus filhos logo após o parto. Taí uma parte do processo de inovação que essas discussões teóricas ignoram: a tecnologia é só parte. Existe todo um caminho intermediário ocupado por advogados, vendedores e visionários.

Enquanto os três inventores se ocupavam com os protótipos do telefone, a inovação em comunicação vigente na época era o telégrafo. A gigante do telégrafo nos Estados Unidos era a Western Union, uma empresa de que você já ouviu falar, provavelmente para enviar dinheiro para outros países. No começo do século XIX, era ela quem dominava aquele sistema rápido de comunicação. O telégrafo era o futuro. Por um bom tempo, inventores como Graham Bell e Drawbaugh estavam pesquisando como melhorar o telégrafo. Até que o mecenas de Graham Bell percebeu que aquilo tinha uma utilidade maior que o telégrafo. A Western Union teve a chance de comprar a Bell Telephone Company por meros US$ 100 mil no mesmo 1876 da invenção do protótipo. Em valores atuais, seria algo além dos US$ 3 bilhões. Não exatamente barato, mas a alternativa saiu ainda mais caro.

Grande erro, talvez na mesma escala do Yahoo rejeitando um acordo de licenciamento da tecnologia por trás do Google por US$ 1 milhão em 1998. Pior: quatro anos depois, o então CEO Terry Semel achou que US$ 3 bilhões pela empresa era muito. Deu no que deu.

Quando os executivos da Western Union se ligaram da cagada, entrou em prática a defesa do gigante: a Western Union contratou um inventor de nome Thomas Edison e falou “olha aqui, bonitinho, toma esse dinheiro e faz um telefone aí para nós”. Edison fez e a Western Union usou sua capilaridade para instalar mais de 56 mil telefones em dois anos nos EUA. Sem muito esforço, a empresa tinha virado a maior operadora de telefonia do mundo. Só restava à Bell Telephone Company responder com o que tinha à mão: a patente.

Em 1878, a empresa iniciou um processo de infração de patentes contra a Western Union. Nos anos seguintes, as duas empresas chegaram a um acordo: a Western Union abandonaria os telefones e, em troca, a Bell lhe daria uma parte do negócio. Segundo Tim Wu, a Western Union parecia confortável em manter os telégrafos enquanto os telefones seriam explorados por outra empresa. Foi um erro fatal. Desde o começo, a “rede de telefonia da Western Union foi projetada para não ameaçar o negócio do telégrafo”. Era um complemento. O principal ainda era o telégrafo. Ao dar à Bell o direito de explorar a telefonia sozinha, a Western Union cavou a própria cova e deitou.

Menos de uma década após o protótipo, a Bell Telephone Company já era uma gigante de telecomunicações. Em 1885, a empresa resolveu criar uma nova divisão responsável por ligações de longa distância. Nascia a American Telephone & Telegraph Company. Para abreviar, usaram só a sigla: AT&T. ; É maluco pensar como a maior operadora dos Estados Unidos até hoje é ligada diretamente não ao sujeito que fez ao primeiro protótipo, mas àquele que soube criar um mercado próprio e defendê-lo com uma patente.

O episódio dessa quinzena do Tecnocracia não tem paráfrase, aquela historinha no começo para servir de exemplo e facilitar a compreensão. A história acima é o ponto de partida. No segundo episódio da série “O que foi”, falaremos da quebra do sistema Telebrás no Brasil e como ela moldou a forma como nos comunicamos até hoje. Para termos uma noção exata do que estamos falamos, a gente deu alguns passinhos para trás para entender uma questão fundamental sobre telecomunicações: desde 1876, o mercado corre sempre na direção do monopólio. Nascida pelas mãos de Graham Bell, a AT&T; passou um século concentrando mercado até que, em 1974, o governo norte-americano iniciou o processo de quebra da empresa. Oito anos depois, a Bell tinha virado sete operadoras menores. Eram as chamadas “Baby Bells”.

Gradualmente pelos 30 anos seguintes, as pecinhas foram se juntando para formar uma AT&T; maior e mais poderosa do que nunca. Ou, como coloca Tim Wu no livro: “O resultado da quebra foi inegavelmente revigorante para o comércio e a cultura. Mas como o robô assassino T-1000 de Exterminador do futuro 2, os poderes estraçalhados se recuperariam, seja em uma forma impressionantemente similar (como a AT&T;) ou no formato de uma nova espécie corporativa chamada de conglomerado (assim como a vingança dos exibidores e de Hollywood)”. Em 2007, o Minnesota Journal of Law, Science & Technology publicou um artigo acadêmico explicando como os “Baby Bells” foram se juntando. Mas a história não para aí. Em 2016, ao comprar a Warner Media por US$ 85,4 bilhões, a AT&T; ganhou ainda mais corpo. A dinâmica se repetiu em outro país, que passou por um modelo muito parecido, da quebra de um sistema monopolístico ao reagrupamento dessas empresas em poucas gigantes. Tal qual aquela única patente foi a base para o mamute que é a AT&T; hoje, é essa a teoria que melhor explica o que é o mercado de telecomunicações no Brasil hoje. A cada quinze dias, o Tecnocracia faz um mergulho em eventos históricos para mostrar que, ainda que muita gente veja novidades em tudo, há muito nos livros de história que explicam onde estamos hoje e o que deverá acontecer nos próximos anos em tecnologia. Tudo é reprise. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento do Manual do Usuário. Uma vez por mês eu faço um episódio ao vivo do Tecnocracia, o Balcão, dentro do grupo do Manual no Telegram. Quem paga a partir do plano II ganha acesso e um adesivo lindão. Custa a partir de R$ 16/mês. Interessados(as), sigam por este link.

A telefonia no Brasil tem três fases bem marcadas. A primeira começa em 1877, quando a Bell dá de presente ao imperador Pedro II alguns terminais para que ele possa conversar com seus convivas e asseclas em outros palácios. O primeiro telefone instalado no Brasil conectava o Palácio de São Cristóvão ao Palácio da Rua Primeiro de Março. A Bell não era boazinha de natureza: havia interesses por trás do presente.

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Em outubro de 1861, um sujeito conseguiu criar uma máquina que registrava a voz humana, convertia ela em impulsos elétricos e a repassava a outro terminal por meio de um fio de cobre. In October 1861, a guy managed to create a machine that recorded the human voice, converted it into electrical impulses and transferred it to another terminal through a copper wire. No outro terminal, os impulsos eram reconvertidos em voz para chegar aos ouvidos de alguém fisicamente distante do locutor. Era um protótipo de uma tecnologia que hoje chamamos de telefone. Qual é o nome deste sujeito?

Você, provavelmente, com uma ponta de orgulho, puxa da memória e crava o nome associado à invenção do telefone no seu cérebro. Mas é bem provável que você tenha errado. Esse sujeito era o cientista e inventor alemão Johann Philipp Reis.

De novo.

Em 1867 (ou seja, seis anos depois), um norte-americano criou uma máquina capaz de transformar a voz em impulsos elétricos, repassá-los a outro terminal por uma linha de cobre e transformá-los de novo em voz para quem estivesse do outro lado. O nome desse sujeito, por favor?

Agora tem que ser aquele, né? Também não é. Esse é um inventor chamado Daniel Drawbaugh que, entre outras coisas, inventou separadores de moedas, uma lancheira dobrável e ferramentas pneumáticas.

Mais uma vez.

Em 10 de março de 1876 (ou seja, 9 anos depois de Drawbaugh e 15 depois de Philipp Reis), um sujeito nascido na Escócia criou uma máquina que registrava a voz, a transformava em impulsos elétricos, repassava os impulsos por um fio de cobre para terminais adiante e os transformava em voz para a pessoa do outro lado da linha.

Qual é o nome dele? Agora você pode matar no peito: Alexander Graham Bell.

Está confuso(a)? Afinal, o que você aprendeu na escola é que Graham Bell inventou o telefone. Não fique. Se inventar significa ser o primeiro a demonstrar um protótipo funcional de uma nova tecnologia, então Graham Bell não inventou o telefone. Mais importante que isso, porém, é que Graham Bell foi capaz de inventar um mercado para aquele protótipo desenvolvido em seu laboratório, uma coisa que Drawbaugh e Philipp Reis jamais conseguiram, mesmo com tecnologias semelhantes e anos de vantagem.

No setor de tecnologia, nem sempre o primeiro a chegar é quem colhe os melhores frutos. Há na história uma série de empresas que se notabilizaram pelo que eu chamo de síndrome de Junior Baiano: chega atrasado, mas quando chega não deixa espaço para reação. A Microsoft é um excelente exemplo disso: o Windows não foi o primeiro sistema operacional gráfico, nem o Office o primeiro pacote corporativo, nem o Internet Explorer o primeiro navegador. Ainda assim, ela dominou os três setores, a base do seu império durante décadas. Ok, menos o navegador e já faz bem uma década que a teoria não se aplica mais à empresa. Enfim.

Essa invenção simultânea não chega a ser uma imensa novidade — ao longo da história, são vários os episódios em que invenções ou descobertas fundamentais à sociedade estavam sendo criadas ou concluídas ao mesmo tempo por pesquisadores e/ou grupos independentes que não conheciam os trabalhos uns dos outros. Abrimos as primeiras aspas para um livro seminal sobre tecnologia, já indicado aqui, chamado Impérios da comunicação: Do telefone à internet, da AT&T; ao Google, do Tim Wu: “A história da ciência é cheia de exemplos do que o escritor Malcolm Gladwell chama de ‘descobertas simultâneas' — tão cheia que o fenômeno representa a norma, não a exceção. Poucos conhecem hoje o nome de Alfred Russel Wallace, ainda que ele tenha escrito um artigo propondo a teoria da seleção natural em 1858, um ano antes de Charles Darwin ter publicado A Origem das espécies. Leibnitz e Newton desenvolveram cálculo simultaneamente. E em 1610, quatro outros fizeram as mesmas observações lunares que Galileu Galilei.”

Se não é necessariamente a tecnologia, o que garante a dominação de um setor, os bolsos cheios e o nome nos livros de história? No caso do Graham Bell, dois fatores interligados foram essenciais. O primeiro era quem financiou a invenção. Tenha em mente que eram poucos os inventores sérios que não tinham alguma espécie de mecenas por trás financiando a pesquisa e pagando um salário para que o inventor continuasse a tocar a vida enquanto não saísse um produto lucrativo do seu laboratório. Quem financiava Graham Bell era um sujeito chamado Greene Hubbard, que coincidentemente vinha a ser seu sogro. Aí entra o segundo fator, absolutamente fundamental: em 7 de março de 1876, três dias antes de fazer seu protótipo finalmente funcionar, Graham Bell pediu e ganhou o registro de uma patente referente a ele. Essa patente é a pedra fundamental do império que Graham Bell construiu. No ano seguinte, Bell e Hubbard fundaram juntos a Bell Telephone Company.

Patentes são dispositivos legais que protegem o criador de uma nova tecnologia ou produto de aventureiros dispostos a copiar e lucrar com uma tecnologia ou produto alheio. Na teoria, a patente funciona como um incentivo à inventividade: quem cria algo se torna o único detentor do direito de exploração daquilo. A questão é que nem todo inventor está familiarizado com o processo (culpa do inventor) ou patentes acabam virando armas na mão de empresas lutando por uma mercado (a disputa entre Oracle e Google pelo sistema operacional Android há uma década é um exemplo perfeito disso). No caso de Graham Bell, aquela única patente foi capaz de eternizar seu nome como inventor do telefone ao mesmo tempo em que bloqueou a pequena firma criada para explorar o telefone de ser esmagada pelo monopólio da época.

Nenhuma invenção tecnológica é fruto de abiogênese — ou seja, aparece do nada e toma o mercado de assalto. Quem ocupa o trono naquele momento da história vai usar seu peso, seu dinheiro e sua mão de obra para evitar que sua confortável posição seja roubada por uma molecada insolente com ideias e tecnologias novas e melhores. É o fenômeno Cronos na mitologia grega, de que já falei N vezes no Tecnocracia: para não ser substituído, Cronos comia seus filhos logo após o parto. Taí uma parte do processo de inovação que essas discussões teóricas ignoram: a tecnologia é só parte. Existe todo um caminho intermediário ocupado por advogados, vendedores e visionários.

Enquanto os três inventores se ocupavam com os protótipos do telefone, a inovação em comunicação vigente na época era o telégrafo. A gigante do telégrafo nos Estados Unidos era a Western Union, uma empresa de que você já ouviu falar, provavelmente para enviar dinheiro para outros países. No começo do século XIX, era ela quem dominava aquele sistema rápido de comunicação. O telégrafo era o futuro. Por um bom tempo, inventores como Graham Bell e Drawbaugh estavam pesquisando como melhorar o telégrafo. Até que o mecenas de Graham Bell percebeu que aquilo tinha uma utilidade maior que o telégrafo. A Western Union teve a chance de comprar a Bell Telephone Company por meros US$ 100 mil no mesmo 1876 da invenção do protótipo. Em valores atuais, seria algo além dos US$ 3 bilhões. Não exatamente barato, mas a alternativa saiu ainda mais caro.

Grande erro, talvez na mesma escala do Yahoo rejeitando um acordo de licenciamento da tecnologia por trás do Google por US$ 1 milhão em 1998. Pior: quatro anos depois, o então CEO Terry Semel achou que US$ 3 bilhões pela empresa era muito. Deu no que deu.

Quando os executivos da Western Union se ligaram da cagada, entrou em prática a defesa do gigante: a Western Union contratou um inventor de nome Thomas Edison e falou “olha aqui, bonitinho, toma esse dinheiro e faz um telefone aí para nós”. Edison fez e a Western Union usou sua capilaridade para instalar mais de 56 mil telefones em dois anos nos EUA. Sem muito esforço, a empresa tinha virado a maior operadora de telefonia do mundo. Só restava à Bell Telephone Company responder com o que tinha à mão: a patente.

Em 1878, a empresa iniciou um processo de infração de patentes contra a Western Union. Nos anos seguintes, as duas empresas chegaram a um acordo: a Western Union abandonaria os telefones e, em troca, a Bell lhe daria uma parte do negócio. Segundo Tim Wu, a Western Union parecia confortável em manter os telégrafos enquanto os telefones seriam explorados por outra empresa. Foi um erro fatal. Desde o começo, a “rede de telefonia da Western Union foi projetada para não ameaçar o negócio do telégrafo”. Era um complemento. O principal ainda era o telégrafo. Ao dar à Bell o direito de explorar a telefonia sozinha, a Western Union cavou a própria cova e deitou.

Menos de uma década após o protótipo, a Bell Telephone Company já era uma gigante de telecomunicações. Em 1885, a empresa resolveu criar uma nova divisão responsável por ligações de longa distância. Nascia a American Telephone & Telegraph Company. Para abreviar, usaram só a sigla: AT&T. ; É maluco pensar como a maior operadora dos Estados Unidos até hoje é ligada diretamente não ao sujeito que fez ao primeiro protótipo, mas àquele que soube criar um mercado próprio e defendê-lo com uma patente.

O episódio dessa quinzena do Tecnocracia não tem paráfrase, aquela historinha no começo para servir de exemplo e facilitar a compreensão. A história acima é o ponto de partida. No segundo episódio da série “O que foi”, falaremos da quebra do sistema Telebrás no Brasil e como ela moldou a forma como nos comunicamos até hoje. Para termos uma noção exata do que estamos falamos, a gente deu alguns passinhos para trás para entender uma questão fundamental sobre telecomunicações: desde 1876, o mercado corre sempre na direção do monopólio. Nascida pelas mãos de Graham Bell, a AT&T; passou um século concentrando mercado até que, em 1974, o governo norte-americano iniciou o processo de quebra da empresa. Oito anos depois, a Bell tinha virado sete operadoras menores. Eram as chamadas “Baby Bells”.

Gradualmente pelos 30 anos seguintes, as pecinhas foram se juntando para formar uma AT&T; maior e mais poderosa do que nunca. Ou, como coloca Tim Wu no livro: “O resultado da quebra foi inegavelmente revigorante para o comércio e a cultura. Mas como o robô assassino T-1000 de Exterminador do futuro 2, os poderes estraçalhados se recuperariam, seja em uma forma impressionantemente similar (como a AT&T;) ou no formato de uma nova espécie corporativa chamada de conglomerado (assim como a vingança dos exibidores e de Hollywood)”. Em 2007, o Minnesota Journal of Law, Science & Technology publicou um artigo acadêmico explicando como os “Baby Bells” foram se juntando. Mas a história não para aí. Em 2016, ao comprar a Warner Media por US$ 85,4 bilhões, a AT&T; ganhou ainda mais corpo. A dinâmica se repetiu em outro país, que passou por um modelo muito parecido, da quebra de um sistema monopolístico ao reagrupamento dessas empresas em poucas gigantes. Tal qual aquela única patente foi a base para o mamute que é a AT&T; hoje, é essa a teoria que melhor explica o que é o mercado de telecomunicações no Brasil hoje. A cada quinze dias, o Tecnocracia faz um mergulho em eventos históricos para mostrar que, ainda que muita gente veja novidades em tudo, há muito nos livros de história que explicam onde estamos hoje e o que deverá acontecer nos próximos anos em tecnologia. Tudo é reprise. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento do Manual do Usuário. Uma vez por mês eu faço um episódio ao vivo do Tecnocracia, o Balcão, dentro do grupo do Manual no Telegram. Quem paga a partir do plano II ganha acesso e um adesivo lindão. Custa a partir de R$ 16/mês. Interessados(as), sigam por este link.

A telefonia no Brasil tem três fases bem marcadas. A primeira começa em 1877, quando a Bell dá de presente ao imperador Pedro II alguns terminais para que ele possa conversar com seus convivas e asseclas em outros palácios. O primeiro telefone instalado no Brasil conectava o Palácio de São Cristóvão ao Palácio da Rua Primeiro de Março. A Bell não era boazinha de natureza: havia interesses por trás do presente.