Saudade do Brasil (Tom Jobim), O ARRANJO #25 (English subtitles)
A história é simples: Tom Jobim estava no exterior, num quarto de hotel em Nova York,
quando se deparou com uma faca de aço, dessas de cortar carne, de churrasco, uma faca ótima
No aço estava impresso: Made in Brazil, e ele se sentiu orugulhoso da faca ter sido feita aqui e ser tão boa
Era o começo dos anos 70, durante a ditadura militar,
e Tom sentiu uma saudade imensa daquele antigo Brasil do qual a gente, num momento ou outro,
costumava tanto se orgulhar
Aquele país cordial, lembra?
Pois é essa saudade que está na música, Saudade do Brasil
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, e esse é O ARRANJO, seja bem vindo
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Saudade do Brasil é, segundo o seu compositor, Tom Jobim, uma peça sinfônica, lançada no disco Urubu, de 1976
Quando a Bossa Nova surgiu foi acusada de ser uma espécie de samba americanizado,
com a tal influência do jazz, que está na música de Carlos Lyra
Na época do lançamento de Urubu, quase 20 anos depois,
já não tinha sentido associar a música de Tom à música estadunidense
Nessa época Tom fez a seguinte afirmação para o jornal O Globo:
Chega a um ponto que pra gravar música brasileira eu tenho que ir aos Estados Unidos,
porque aqui a música brasileira está muito por baixo,
aqui todo mundo só quer saber de rock, as rádios só tocam rock
A jornalista Ana Maria Baiana percebeu a citação de Jobim a uma declaração feita por Ari Barroso em 1954,
a frase era literalmente a mesma,
mas em 54 Ari reclamava que tinha que ir gravar música brasileira nos Estados Unidos porque no Brasil só se tocava bolero
Mas porque o disco se chamava Urubu, se não tinha nenhuma música com esse nome no repertório?
Segundo o livro Cancioneiro Jobim, era uma provocação,
mas principalmente uma homenagem ao bicho alado mais injustamente desprezado pelo homem
Nas palavras de Jobim:
"Todo mundo diz que o urubu dá azar, mas quem dá azar somos nós mesmos.
Nós é que destruímos a humanidade, que inventamos a bomba atômica
e depois botamos a culpa no urubu, logo no urubu, que só faz limpar, que é o lixeiro"
O músico Dori Caymmi, um dos mestres arranjadores do Brasil,
disse que não dá pra dizer que em Saudade do Brasil o arranjador foi Claus Ogerman
Segundo Dori, o arranjo da música já estava no piano de Tom Jobim, ele já compôs com o arranjo pronto,
o trabalho de Claus, nessa faixa, foi a de orquestrador, ele fez a instrumentação, como falou Dori
É essa versão, a primeira e definitiva versão de Saudade do Brasil,
gravada no disco Urubu, que eu vou analisar nesse vídeo
UM POUCO DE HISTÓRIA
O disco Urubu é uma espécie de continuação do disco Matita Perê, lançado 3 anos antes
Assim como em Matita Perê, Tom Jobim bancou do seu próprio bolso a gravação do disco,
negociando depois a distribuição com uma grande companhia de disco,
no caso de Urubu o disco foi lançado pela multinacional Warner
O fato de financiar inteiramente os custos da gravação dava ao Tom uma liberdade total sobre o seu trabalho:
ele escolhia o arranjador, os músicos, o estúdio
Nesses dois discos Tom parece buscar um equilíbrio entre canções, músicas com letras, e temas instrumentais
A disposição das músicas nos discos é idêntica:
tanto em Matita Perê quanto em Urubu o lado A é de canções, e no lado B ficam os temas instrumentais
Os próprios meios físicos da época, o disco de vinil e a fita cassete, tinham essa característica de dividir o disco ao meio,
e isso se perdeu com a chegada do CD e já não faz mas nenhum sentido na era do streaming
Nesses dois discos também o Tom começa a falar de ecologia, da fauna e da flora brasileiras,
um tema na época praticamente inédito na canção brasileira
É quase uma enciclopédia da natureza brasileira:
as letras falam de sabiá, matita pereira, boto, caranguejo, arraia, papagaio, inhambu, jereba, ingá, peroba, caingá
O poeta Vinícius de Moraes chegou a falar com Jobim: Mas você vai cada dia mais pra dentro do mato!,
no que Tom retrucava citando Guimarães Rosa: Você nunca pode entrar completamente no mato, só a metade
Nessa fase do Tom há uma intenção, senão explícita ao menos subliminar,
de aproximar a sua obra à obra de dois ícones da cultura brasileira do século XX: Guimarães Rosa e Villa-Lobos
Especialmente na letra de Matita Perê, escrita em parceria com Paulo César Pinheiro,
a conexão do texto do Tom com a estética de Guimarães Rosa é bem aparente
A letra de Matita Perê é sutilmente inspirada no conto Duelo, do livro Sagarana,
e Tom convidou o parceiro Paulo César Pinheiro
também porque conheceu a música que Pinheiro tinha escrito com João de Aquino, a música se chamava Sagarana
A presença da orquestra nesses dois discos se afasta completamente da estética bossanovística,
que era de extrema economia no uso dos instrumentos orquestrais:
a orquestra agora é densa, com registro sinfônico, e isso fica mais óbvio nos temas instrumentais
Tom sempre gostou muito de música de concerto, a chamada música clássica, erudita,
e a sua obra tem momentos em que se misturam o clássico e o popular
O seu primeiro disco, ou o primeiro disco em que ele assina como compositor,
foi Sinfonia do Rio de Janeiro, em parceria com Billy Blanco
Mas o nome sinfonia do título era mais uma jogada de marketing:
não era uma composição erudita, inclusive o Tom não queria esse título, ele foi voto vencido
Tom não escreveu nem os arranjos dessa Sinfonia popular em tempo de samba,
como foi apresentada, ele chamou o seu amigo e mestre Radamés Gnatalli
Mas quando Juscelino Kubitscheck estava fundando Brasília, a nova capital do Brasil,
Tom e Vinicius foram contratados para escrever a Sinfonia da Alvorada, aí sim uma sinfonia de verdade
Boa parte dessa sinfonia foi composta pela dupla já em Brasília, hospedados no Catetinho,
uma espécie de palácio de madeira projetado por Oscar Niemeyer
para ser a sede do governo federal até a construção do Palácio do Planalto
- o nome Catetinho era uma referência ao Palácio do Catete, antiga sede do governo no Rio de Janeiro
Estar no cerrado, no coração do Brasil, mexeu com Tom,
e a sinfonia tem pios de pássaros e influência da natureza - como as obras de Villa-Lobos
O segundo movimento dessa Sinfonia, O Homem, foi regravado em Urubu, e mostra uma influência mais direta da obra de Villa-Lobos
O primeiro movimento da Bachianas Brasileiras no1 do Villa-Lobos, Embolada, começa com um ostinato nas cordas
ostinato é um padrão, rítmico ou melódico, que se repete - e a melodia surge em um arpejo ascendente, nos cellos
Em O Homem, Tom cria também um ostinato nas cordas, e também a melodia entra num arpejo ascendente, nos cellos
Claro que isso não é um plágio, mas sim uma influência, ou homenagem:
Tom gostava de repetir, citando, Stravinsky, "Só se pode roubar a quem se ama"
Em Saudade do Brasil, Tom parece evocar mesmo um passado, um outro momento na história na história do Brasil,
e parece encaixar aí, como modelo, o Brasil de Villa-Lobos
Exatamente nesse período o Tom começou a ter problemas circulatórios nas pernas
e o médico disse que ele tinha que parar com o cigarro, e ele passou a fumar charutos,
o que acabou aproximando a imagem dele com a de Villa-Lobos
Naquela época, com quase 50 anos, Tom já poderia ser considerado "O compositor nacional",
papel que era até então de Villa-Lobos no imaginário cultural brasileiro do século XX
Claro que só o charuto ou a própria ideia de ser o compositor nacional de nada valeriam
se a música do Tom não estivesse realmente impregnada da influência da obra de Villa-Lobos,
e em Saudade do Brasil esse lado villa-lobiano ficou muito claro
"Olha, quando eu ouvi, é do disco Urubu, eu vinha ouvindo o disco todo, eu já conhecia o trabalho,
mas quando eu ouvi Saudade do Brasil, aí, eu não pude parar de ouvir,
porque ele traz um Tom Jobim assim tão vivo, villa-lobiando pela vida da gente, sabe, do lado puro do Villa-Lobos
Saudade do Brasil foi trazendo aquilo tudo, eu fiquei engasgado, ouvi umas 5 vezes seguidas,
eu ainda tava morando em São Paulo, eu liguei pra ele e falei: Meu Deus do céu o que é isso?
É o grande trabalho do Tom, na minha opinião ele não fez nada mais brasileiro e mais bonito do que Saudade do Brasil"
1. MELODIA A melodia principal de Saudade do Brasil é apresentada diversas vezes, às vezes com variações, mudanças de tom,
sempre com uma instrumentação diferente, mas o núcleo básico é esse
Uma das obras de Villa-Lobos que mais impressionou Jobim foi o Choro no 10, nele Tom via os pássaros, a floresta, via o Brasil
Villa-Lobos dizia que usou no começo da peça um canto de um pássaro raro chamado Azulão da Mata
Tom escreveu na introdução de sua música "Sabiá", em parceria com Chico Buarque, um trecho do canto da Sabiá,
assim no feminino porque o Tom explicou que é assim que os caçadores falam
E voltou a citar o canto desse pássaro no fim de Saudade do Brasil, tocado pelo corne inglês
2. ORQUESTRAÇÃO O músico Paulo Jobim, filho do Tom, diz que Claus Ogerman foi o maior parceiro musical de Tom Jobim
A cantora Miúcha, que participou das gravações do disco Urubu, contava que existia um carinho,
nas palavras dela uma quase paixão, do Claus com o Tom, além do entendimento musical perfeito
E Tom retribuía, dizia que Claus tocava jazz no piano com muito swing, com muita bossa,
dizia que ele era o João Donato alemão
No telefonema que Dori Caymmi deu para Tom depois de ouvir Saudade do Brasil ele comenta a orquestração
"E falei da instrumentação do Claus, que é fabulosa, os pesos todos dessa música,
ele deve ter levado alguns bons dias trabalhando nessa canção pra retratar com tanta fidelidade esse piano que o Tom tocou
É o Tom Jobim, ele fazia no piano igual, você pode perguntar ao Paulinho que é filho, que viu várias vezes"
Foram perto de 50 músicos que participaram da gravação de Saudade do Brasil,
músicos da Orquestra Sinfônica de Nova York
Eram um naipe completo de cordas, 4 flautas, 1 oboé, 1 corne inglês, 3 trombones, 4 trompas, piano elétrico,
1 fagote, 1 clarone, percussão e 12 vozes femininas, além do piano de Tom Jobim
Ao final da gravação os músicos se levantaram aplaudiram de pé
a obra do maestro brasileiro orquestrada pelo maestro alemão
3. A FORMA DO ARRANJO A partitura manuscrita pelo Tom Jobim marca 16 partes para essa música, mas não é a forma da música,
são só os trechos marcados, na maioria das vezes indicando uma modulação, uma mudança de tom
A introdução começa com acordes de flautas, acompanhando uma melodia no cello
O acompanhamento harmônico nas flautas é sempre no contratempo, tocando deslocado em relação à melodia
A melodia da introdução agora está no corne inglês, que é um instrumento de palheta dupla, da família do oboé
O piano elétrico toca em uníssono na introdução com os outros instrumentos,
é uma marca do Ogerman fazer uníssono do piano elétrico com as flautas
A melodia principal é apresentada pela primeira vez nas cordas,
notem a melodia mais aguda com notas mais paradas, como se a melodia se desprendesse dessa voz
Uma passagem em stacatto mas flautas, notas bem curtas
Perguntas e respostas nas cordas, violinos perguntam, violas e cellos respondem
Uma melodia de contracanto nas flautas, no agudo
O tema principal agora com as vozes femininas, com frases de respostas nas trompas, bem piano, bem suave
Um crescendo com frases descendentes nas cordas e no piano com cama harmônica das vozes,
crescendo também, indo pro agudo
Uma frase com sentido descendente nas trompas, com a dinâmica forte, mas decrescendo
Cordas em movimento contrário seguindo de piano, flautas e violinos em uníssono
Uníssono de cordas graves, clarone e fagote, com oboé oitavado
Tema principal nas cordas com frases ascendentes nos violinos mais agudos
Uma passagem com naipe de madeiras, com melodia no corne inglês e respostas em movimento contrário de oboés e fagotes
A melodia principal nas flautas e cordas, com contracanto nas vozes femininas fazendo saltos de sétimas descendentes
e comentários sutis de corne inglês
Frases de sentido descendente no grave nos violinos
Flautas e oboé em oitavas, junto com o piano
Perguntas e respostas com solos de violino e cello, frases curtas descendentes, mas indo pro agudo, preparando um ápice
Um tutti da orquestra, todos tocando juntos, com base de metais
Mais um trecho de naipe de madeiras, agora com a melodia no oboé
Um fortíssimo em oitavas nas cordas, seguido de perguntas e respostas em diferentes instrumentos
Uma frase descendente nos cellos, com acordes no grave das cordas
Movimento contrário em fortíssimo nas cordas, em oitavas
Frase nas flautas, com acompanhamento do fagote
Respostas agora no corne inglês, de novo o naipe de madeiras
Movimento contrário nas cordas, violinos em sentido descendente,
cellos em sentido ascendente, todas na região mais pro grave
Súbito os violinos vão pro agudo
Tema nos violinos, com comentários de cordas graves e flautas e baixo pedal, ou seja, sustentando a nota, no clarone e fagote
Perguntas nas cordas, trompas respondem
Violinos vão pra uma região muito aguda
A última apresentação do tema, bem piano, com comentários de violino solo no agudo
Frases descendentes do violino preparando para a coda
Violinos tocam em harmônicos, um som etéreo, no agudo, e o corne inglês faz a frase do canto da Sabiá
Frase de trompas com sentido ascendente
Cordas fazem uma frase em fortíssmo, para o grave
Acorde suspensos de piano e vozes femininas fecham a música
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Muito obrigado, até uma próxima
Eu tenho a impressão que a minha música tem muito de ecologia, do céu, do mar, dos bichos
Eu levei a natureza pra música