Documentário: BBC revela venda ilegal de terras na Amazônia pelo Facebook (2)
Depois da gravação, questionamos André sobre o conteúdo de sua fala, mas ele não respondeu
Mais da metade das áreas de floresta derrubadas viram pastagens na Amazônia
E assim como a madeira, bois criados em áreas derrubadas ilegalmente também podem entrar
nos mercados como se tivessem origem legal
Os bois são vendidos para fazendas que têm a documentação em dia
Nesse esquema, o gado de origem ilegal é misturado ao legal antes de chegar aos frigoríficos
Inclusive, aqui em Rondônia, a população do Estado é de 1,8 milhão
E o gado bovino, a gente tinha, até meados de 2019, 14 milhões (de cabeças)
Então são praticamente 9 a 10 cabeças de gado para cada habitante do Estado
Numa área de floresta, né?
A pecuária tem baixíssima produtividade na Amazônia: aqui, um boi ocupa cerca de
um hectare, em média
Em outras partes do Brasil, o mesmo espaço pode abrigar 10 cabeças de gado
No dia seguinte, encontramos a ambientalista Ivaneide Bandeira Cardozo
Ela luta contra o desmatamento em Rondônia há mais de 30 anos
Eu sou filha de seringueiros, então eu cresci na floresta
Então estar próximo da floresta, estar no rio é muito bom, é muito importante
É vida para mim, sabe?
Ivaneide quer nos mostrar uma área de floresta preservada – algo cada vez mais raro em Rondônia
Tá vendo aqui?
Aqui é uma pata de anta
Tá vendo?
E aqui tu tá em cima do caminho da paca
A ONG que ela fundou, Kanindé, trabalha com povos indígenas para ajudá-los a proteger
suas terras de invasores
Mas é perigoso ser um defensor da floresta aqui
Em 18 de abril, um indígena que fazia esse trabalho também de defender o meio ambiente
foi assassinado
Você conhecia ele?
Sim, eu ajudei...
Eu considerava ele como um filho
Ari era membro de uma comunidade que vive na maior terra indígena de Rondônia, a Uru-Eu-Wau-Wau
Ninguém foi preso pela morte dele
Eu me sinto revoltada...
Eu não gosto de falar
Eu me sinto revoltada, porque a Justiça não age, entendeu?
Não pune quem mata os ativistas, quem mata quem defende a floresta
Um relatório da ONG Global Witness apontou que 24 ativistas ambientais e dos direitos
humanos foram assassinados no Brasil em 2019
Dez deles eram indígenas
A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau abriga a maior área preservada de Rondônia, com tamanho
quase equivalente ao de Sergipe
Um paraíso de floresta cercado por fazendas
Viemos encontrar Bitaté, um dos líderes da comunidade
A gente dorme inseguro, não tem aquela segurança, entendeu?
É medo que alguém chegue e ataque a aldeia e nos ataque também
Bitate tem só 20 anos, mas sob sua liderança a comunidade criou um grupo para monitorar
invasores
Todos os meses a equipe faz expedições
Ari era um membro do grupo
A Fundação Nacional do Índio – Funai – órgão federal responsável por proteger os povos
indígenas, não tem uma base aqui
A unidade mais próxima fica a cerca de 200 quilômetros
A gente sabe que é muito arriscado esse trabalho, mas mesmo assim a gente está lá, protegendo
o nosso território, protegendo o que os mais antigos deixaram para a gente
Bitate diz que as invasões estão cada vez mais frequentes
Eu mostro pra ele o que descobrimos na nossa investigação
Isso aqui é um anúncio que a gente achou, de uma terra sendo vendida pelo Facebook,
dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau
O que você acharia disso?
Uma terra, um pedaço de terra, grilado, sendo vendido pelo Facebook, dentro do território
de vocês?
Cara, eu acho que isso é uma falta de respeito, no meu ponto de vista
E eu acho que os órgãos deveriam tomar providência o mais rápido possível, entendeu?
Dá para ver no mapa mesmo, nesse ponto, que é dentro da terra indígena
Bem perto daqui
Na missão que fizemos saímos até nesse local que está indicado
O próprio Facebook deveria, vamos dizer assim, se responsabilizar pelo que ele vem fazendo
As invasões acontecem aqui com ou sem o Facebook
Mas a rede social faz com que invasores de áreas como essa tenham mais oportunidades
de fazer negócios
No dia seguinte, nosso agente Lucas deixa a cidade
O vendedor que encontramos no Facebook anunciando um pedaço de terra no território Uru Eu
Wau Wau concordou em encontrá-lo
Como os vendedores anteriores, ele pensa que Lucas trabalha para fazendeiros de São Paulo
Dos encontros que a gente teve até agora na minha avaliação foi o mais tenso
Ele tava suspeitando de vocês?
Ele tava suspeitando
Ele foi principalmente, de início, ele foi o mais cauteloso
A primeira coisa que Alvim Alves faz é mostrar vários documentos
Nenhum deles é um título da propriedade
Um dos documentos que ele exibe menciona a Associação Curupira
A associação foi descrita pela Polícia Federal como um grupo criminoso que pratica
desmatamento ilegal, grilagem e invasão de terras no território Uru Eu Wau Wau
E os grileiros agora estão com um novo modelo para avançar, para se apossar da terra, que
é criando associações de produtores rurais
Então, por trás, você tem políticos, você tem fazendeiros, você tem uma série de pessoas
grilando a terra indígena
Alvim Alves não nega que seu lote esteja dentro do território Uru Eu Wau Wau
Mas diz que a comunidade de Bitate não deveria ser a dona daquela área
Ele conversou, explicou a situação da área para a gente, falou que vai ser legalizado,
que existem alguns políticos ajudando eles
Que esse é o momento
O vendedor do lote convida nosso agente para encontrar um homem que ele diz ser um membro
de sua associação
Nós acompanhamos o deslocamento deles pela cidade
Lucas é apresentado a Edinario Batista
Como Alvim, ele tem lotes dentro da terra indígena Uru Eu Wau Wau
Fica claro que muitos grileiros veem Bolsonaro como um aliado
Como outras associações de grileiros, o grupo de Alvim e Edinario mantém contato
com políticos simpáticos ao agronegócio
Edinario diz a Lucas que hoje o principal aliado do grupo é um deputado federal que
os ajudou a marcar encontros com órgãos do governo em Brasília
É comum que políticos em campanha na Amazônia prometam ajudar pessoas a regularizar ocupações
ilegais de terra e a extinguir áreas protegidas
Procuramos Alvim e Edinario após as gravações e os questionamos sobre suas falas, mas eles
não quiseram se manifestar
Quando voltamos para Porto Velho, telefonamos para a equipe do deputado federal Coronel
Chrisóstomo, que concordou em nos receber no dia seguinte
Militar da reserva, o deputado federal Coronel Chrisóstomo se elegeu pela primeira vez em
2018 pelo PSL – o mesmo partido com que Bolsonaro chegou à Presidência
Alguns membros da Associação Curupira, que está envolvida nesse conflito, disseram que
o senhor é um grande apoiador da causa deles, que o senhor ajudou a organizar encontros
em Brasília com eles
É verdade?
Eles me procuraram, levei eles aos órgãos competentes, levei eles ao Incra, levei eles
ao Ministério do Meio Ambiente e à Funai
Então, os órgãos ficaram de conversar entre si para que pudesse resolver essa questão
O senhor sabia que o que eles estavam fazendo era ilegal, que eles estavam invadindo a terra?
O senhor apoiou mesmo assim?
Não sei, não sabia
Isso não me informaram
Se invadiram, já não têm meu apoio
O senhor, sendo deputado, sendo militar, o senhor não deveria ter uma posição um pouco
mais cautelosa ao contatar essas pessoas, ao fazer esses essa intermediação em Brasília
para elas?
Sem dúvida nenhuma
Quando as pessoas procuram o parlamentar, o parlamentar procura se embasar daquilo que
está sendo tratado
É natural
E nem tudo a gente sabe
O parlamentar, qualquer parlamentar, não sabe de tudo
Porque as pessoas trazem ao parlamentar aquilo que há interesse para ela
No nosso último dia em Rondônia, voltamos aos limites da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau
Esse aqui é o limite entre a terra indígena de fazendas
Eu vou pular...
Eu estou dentro da terra indígena, agora
Aqui só deveria ter floresta, mas também há fazendas desse lado
Como muitos aqui, Isaías e sua família não são de Rondônia
Eles vieram do Espírito Santo para cá nos anos 80, em busca de uma vida melhor
A ferramenta de trabalho é essa aqui
É… era uma, é uma região muito farta, né?
Tudo que você planta, produz com fartura
Então é o que chamou atenção do povo para essa região
É isso aí
Agora ele trabalha para o dono desta fazenda de gado
Ele tem... 320 cabeças de vaca
Aí dessa, dessas 320 cabeças, vamos supor que metade está parida, né?
A terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau foi criada em 1991
Esta fazenda fica dentro dos limites do território demarcado
Qual o limite da fazenda?
O limite da fazenda aqui é a mata.
Aquela mata ali, e ali é o outro limite na mata também
Outra mata
Então quer dizer que está tudo rodeado de mata?
De mata
E quando é que essa área foi aberta?
Ah, deve ter a faixa etária de uns quinze a vinte anos
Eu não tenho certeza absoluta
A inação de sucessivos governos permitiu que uma área como essa, que fica dentro de
uma terra indígena, se tornasse uma fazenda consolidada
Órgãos veterinários do Estado chegam a visitar a área para vacinar o rebanho criado
ilegalmente dentro do território indígena
Hoje empregado, Isaías almeja um dia ter o próprio pedaço de terra
Uma propriedadezinha, pelo menos para a gente... fazer que não, morrer em cima do que é da
gente, né?
O Isaías é um cara trabalhador, um cara que tá tentando cuidar da família dele
Não tem nenhum luxo nessa vida que ele leva aqui
Ele veio de fora, mas ao mesmo tempo ele tem um papel no processo de desmatamento da Amazônia
Isso aqui era floresta antes
A história dele mostra como isso pode ser complexo
Não é sempre sobre o bom ou o mau
Tem muita coisa cinzenta aí no meio
De volta a São Paulo, mostramos os resultados de nossa investigação
ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles
Ele nos recebeu no escritório do Ibama na cidade
Nós entrevistamos alguns grileiros, com câmera escondida, e vários deles disseram que consideravam
o governo um aliado
Como o senhor se sente em relação à visão que essas pessoas têm do governo?
É preciso deixar claro o seguinte: o governo do presidente Jair Bolsonaro sempre deixou
claro que é um governo de tolerância zero a qualquer crime, inclusive os ambientais
Agora, isso não quer dizer que não possam ser discutidas algumas premissas da legislação
O que o governo vem defendendo desde o início de 2019 é que alguns aspectos da legislação
fundiária no Brasil precisam ser revistos
Por que então, ministro, os últimos dois anos tiveram os mais altos índices de desmatamento
em muito tempo?
O desmatamento dos anos 2019 e 2020 são mais ou menos um terço do que já foi em 2004
e 2005
Mas isso não quer dizer que estejamos satisfeitos com esse número
Ao contrário
É preciso combater as ilegalidades
Para combater as ilegalidades, há um conjunto de órgãos que se envolve – Ibama, ICMBio,
Polícia Federal, os Estados, todos eles juntos
O senhor não tem nenhuma autocrítica?
Já faz dois anos que o governo está no poder
Não houve nenhum erro, nenhuma ação que poderia ter sido diferente para que esses
números fossem melhores?
É preciso entender o problema da Amazônia nas suas diversas facetas
Uma delas é o desmatamento por uma questão de fiscalização
De outro, por outro lado, é a ausência de alternativa econômica
E o governo federal neste mandato vem colocando bastante força para que a agenda da bioeconomia
finalmente saia do papel
Nossa experiência em Rondônia mostra que a ação é urgente
A destruição da Amazônia se acelera
E agora o uso do Facebook permite que saqueadores da floresta alcancem mais compradores
Em nota, o Facebook afirmou: “Nossas políticas comerciais exigem que compradores e vendedores
cumpram as leis e regulações locais quando compram ou vendem no Marketplace
A empresa disse estar à disposição para trabalhar com as autoridades brasileiras em
qualquer uma das questões levantadas na investigação da BBC
No momento a gente tá perdendo a batalha, sim