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Flavio Mendes (Bossa Nova), Canto de Ossanha, O ARRANJO #16 (English subtitles)

Canto de Ossanha, O ARRANJO #16 (English subtitles)

Em 1962, o ano em que a Bossa Nova se mudou para os Estados Unidos,

Vinicius de Moraes conheceu um dos seus parceiros mais importantes: Baden Powell

Encantado com a técnica e a musicalidade do jovem violonista,

Vinícius fez o convite para eles virarem parceiros

Baden foi com o violão pra casa do poeta sem imaginar que os dois ficariam 90 dias seguidos fechados,

compondo e bebendo, bebendo e compondo

O saldo de bebidas, orgulhosamente computado por Vinícius,

é de 20 caixas de uísque, ou 240 garrafas

Já o saldo musical é incálculável:

foram por volta de 20 canções, mas surgiu ali o embrião,

ali foi a gênese do que, poucos anos depois, seria conhecido por uma sigla: MPB

Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem-vindo

Se você está gostando de assistir aos episódios, pense na possibilidade de apoiar a série O ARRANJO e

assim, colaborar pra eu manter o programa. A partir de apenas 10 reais!

Acesse apoia.se/oarranjo

Canto de Ossanha foi composta nessa primeira leva de canções da dupla,

junto com quase todos os Afro sambas e clássicos como Consolação e Samba em Prelúdio

Entre essa grande temporada que os dois passaram juntos compondo e a gravação do disco Afro Sambas

se passaram 4 anos, o disco só foi gravado em 1966

O produtor musical Roberto Quartin fundou o selo Forma nos anos 1960

e produziu discos essenciais do período, como o Coisas de Moarcir Santos e o Afro sambas

Foi de Quartin a ideia de reunir os Afro sambas ainda não gravados em um disco,

então ficaram de fora alguns dos Afro sambas mais conhecidos, como Berimbau e Samba da Benção

Ficou combinado que os artistas teriam o máximo de liberdade criadora

com um mínimo de interesse comercial, como Vinicius escreveu na contracapa do disco

Pensaram numa estética mais espontânea, relaxada,

menos preocupada com o rigor técnico da gravação

O disco Afro Sambas foi gravado entre os dias 3 e 6 de janeiro de 1966 em um estúdio de 2 canais,

que ficava em um porão no centro do Rio de Janeiro,

que estava alagado por uma chuva torrencial de verão

Segundo Baden, eles gravaram em cima de caixas de cerveja e uísque,

que eles mesmos tinham consumido

Com arranjo do Maestro Guerra Peixe, é a versão de Canto de Ossanha desse disco que eu vou analisar

UM POUCO DE HISTÓRIA

Robert Baden Powell nasceu em Londres, em Fevereiro de 1857 e foi tenente-general do exército britânico

A sua alta patente no exército foi conquistada, sobretudo

por sua incursão na África defendendo as colônias britânicas,

ou seja, lutando contra os povos originários do continente

Entre os seus feitos está a execução de um líder dos Zulus, Uwini,

que tinha se rendido aos ingleses em troca de ter a sua vida poupada

Criou um manual para jovens militares que deu origem ao escotismo,

que rapidamente se espalhou para jovens do mundo inteiro

Na pequena cidade de Varre-e-sai, no interior do estado do Rio de Janeiro,

o sapateiro e multi-instrumentista amador Lilo de Aquino é um escoteiro e fã do militar Britânico

Quando nasce o seu único filho homem, em 1937,

o batiza de Baden Powell de Aquino

A família se muda para o Rio de Janeiro, no subúrbio,

e muito cedo Baden começa a mostrar um grande talento para o violão

Com 8 anos começa a ter aulas de violão erudito com Jayme Florence, conhecido como Meira,

um grande violonista, que tocava no regional de Benedito Lacerda

Baden ia na casa de Meira ter as aulas, e costumava ficar por lá depois,

quando Meira recebia amigos músicos para rodas de choro, um gênero musical de difícil execução

e que contribuiu muito para formar o músico Baden Powell

Na biografia de Baden escrita por Dominique Dreyfus está assim a síntese do músico:

"Clássico pela formação musical, sambista e chorão por suas raízes profundas

e jazzista por geração - um coquetel muito brasileiro"

"Quando eu tinha os meus 15, 16 anos, eu já tinha passado por tudo.

Acompanhar não importa o que, se fosse cantor italiano,

ou sei lá, o que for, eu tava pronto pra fazer

E isso já muito cedo, eu tava pronto"

Com 16 anos compõe a sua primeira música profissional:

Samba Triste, em parceria com Billy Blanco, que foi lançada por Lúcio Alves

Baden era um dos violonistas e guitarristas mais requisitados no Rio de Janeiro

nos anos 1950 e início dos 60

tocava em boates de prestígio, tocava nas principais rádios,

gravava discos e acompanhava os principais nomes da música no Brasil

E foi acompanhando a cantora Silvinha Telles que ele faz a sua primeira viagem a Salvador, Bahia

Em Salvador ele visita terreiros de candomblé, com muito interesse pela religiosidade em si,

mas também muito interessado na música dos terreiros

"Ele sempre foi muito ligado na religiosidade africana

Ele teve esse interesse de ir à Bahia, conhecer os candomblés,

conhecer os toques dos ogãs, pra conhecer os cantos dos orixás"

Essa pesquisa que Baden fez foi fundamental quando surgiu a oportunidade que mudou a sua vida:

o seu encontro com Vinícius de Moraes

"Eu dei o meu endereço a ele, eu morava no Parque Guinle

E dias depois ele apareceu

Então foi uma lenha, porque nós passamos praticamente 4 meses encerrados,

praticamente sem sair de casa

Eu acho que nesses 4 meses nós fizemos mais de 2/3 do nosso repertório"

Vinícius, na época, estava impressionado com o disco "Sambas de Roda e Candomblé da Bahia",

que ele tinha ganhado de presente do compositor, jornalista e jurista Carlos Coqueijo

eram exatamente os cantos dos terreiros baianos

Quando Vinicius e Baden se encontraram, eles estavam impregnados da cultura afro baiana

"Nós estávamos falando sobre a Bahia, eu também já conhecia um pouco essa coisa de candomblé,

Vinicius também, eu tinha mais acesso a isso porque eu era do subúrbio e tal, Vinicius era diplomata,

eu sabia dos negócios de candomblé

e conversando sobre isso eu compus junto com Vinicius assim, batendo papo

Quando terminou a série das 9 músicas, Vinicius gritou e falou assim

puxa, Baden, isso aqui são os afro-sambas!"

Os Afro sambas indicam o caminho que a música brasileira tomaria a partir do meio dos anos 1960,

a partir dos festivais da canção:

a apropriação do folclore não mais para o campo do erudito,

como por exemplo Villa Lobos fez tão bem,

mas sim para o campo da cultura de massa, do rádio, da televisão:

a Música Popular Brasileira

"Em relação aos Afro sambas, aquilo era um desenvolvimento da Bossa Nova,

aquilo já era uma outra corrente, era uma outra história

Já não era mais pra ser chamado de Bossa Nova"

1. MELODIA

Baden Powell estudava com Guerra Peixe quando notou a similaridade

entre os cantos afro-baianos e os cantos gregorianos,

e começou a compor em cima desses modos

"Tem um samba que tem um, é um samba mais escuro, mais negro,

entendeu, tem raízes mais negras

É um tipo de samba que é assim, um samba lamento, tem um lamento

Esse samba é o que tem as raízes mais próximas ao afro, por causa do estilo do cântico,

que vem dos cantos gregorianos

Os cantos gregorianos, quem trouxe pro Brasil foram os Jesuítas, quando vieram catequisar os índios aqui

Então isso tudo tem uma ligação muito grande"

Baden estudava muito, horas por dia no violão,

e ia criando exercícios que viravam as suas composições com um estilo próprio,

com muitos arpejos, melodias que surgem mesmo do instrumento

Os temas de Baden, de inspiração modal,

conduzem as letras do Vinicius para bem longe da sua poesia escrita

As letras vão para uma direção menos discursiva, menos argumentativa,

ficam impessoais, são praticamente cantos coletivos, com repetições, respostas,

o que é muito comum em canções folclóricas e de rituais

Uma das características de Vinicius como letrista é ser camaleônico,

sa adaptar aos temas, entender o que a música está pedindo, qual letra, quais palavras

As letras dos Afro sambas são cruas, diretas, quase o oposto das letras da Bossa Nova,

e Vinicius escreveu a maior parte dessas letras no mesmo ano em que escreveu Garota de Ipanema

O orixá Ossanha, também conhecido como Ossain, é o orixá das folhas sagradas, medicinais,

só ele detém o conhecimento sobre como usar essas folhas

Sem as folhas e os seus segredos não há axé, portanto sem ele nenhuma cerimônia é possível

Vinicius trabalhou com mitos sobre os orixás para escrever as letras,

como me disse o escritor e historiador Luiz Antônio Simas

"No Canto de Ossanha ele está trabalhando ali dois mitos,

dois mitos que são relativamente conhecidos na cultura de candomblé

É um mito que envolve uma disputa entre Ossanha e Xangô a respeito do conhecimento das folhas

Na letra de Vinicius inclusive é Xangô que alerta contra Ossanha

E a letra é muito fundamentada numa história muito famosa de terreiro de candomblé,

que é a história do canto de Ossain

É como Ossanha engana um rei pra se casar com uma das filhas do rei

cantando de uma maneira que parecesse que ele era um pássaro, e não Ossain

Então Vinicius trabalha esses dois mitos, ele não vai além disso, e nesse sentido é interessante

O Vinicius no Canto de Ossanha ele cruza esse mito de Ossanha com a obsessão que ele tinha,

daquela dicotomia Viniciana entre amor e dor, né?"

Amor só é bom se doer, escreve Vinicius nessa letra

E repete, com a ajuda do coro: vai, vai, vai amar, vai sofrer, vai chorar

No último verso, pra terminar brilhantemente a canção,

a melodia dá um salto de oitava, o coro canta com toda a força e resume talvez todo o disco:

vai viver!

2. ORQUESTRAÇÃO

Guerra Peixe foi um compositor e arranjador muito importante para a música brasileira

Era um pesquisador, um folclorista, um conhecedor do folclore brasileiro como poucos

A orquestração que ele definiu para o disco Afro sambas é inédita:

além da base com o violão do Baden mais baixo e bateria,

tem sax tenor, sax barítono e flauta

E um naipe que não se via há muitos anos em gravações:

um naipe de percussões ditas "de terreiro",

que tinha sido usado pela primeira e única vez em 1930

"Mas aí ele vem com atabaques, bongô, pandeiro, tem agogô e tem um afoxé

Esses instrumentos que o Guerra Peixe traz pro Canto de Ossanha, os percussivos,

foram exatamente os mesmos usados no 'Na Pavuna', que é a batucada que o Almirante grava

E o Guerra Peixe, curiosamente, curiosamente não, ele sabia obviamente o que ele tava fazendo,

o Guerra Peixe traz rigorosamente a mesma estrutura de percussão da gravação de 'Na Pavuna', do Almirante,

que é um marco na história da música brasileira

porque foi a primeira que levou para o estúdio essa pegada mais percussiva"

Esses instrumentos tinham desaparecido do que Simas chama de samba fonográfico,

ou seja, o samba gravado, porque dos terreiros de samba eles nunca tinham saído

Essa junção dos instrumentos de sopro com instrumentos de percussão segue hoje, por exemplo,

na Orquestra Rumpillez, criada em Salvador, Bahia, em 2006 pelo maestro Letieres Leite

3. A FORMA DO ARRANJO

Apesar de contar com as cantoras do Quarteto em Cy no disco,

em duas músicas há a presença de um coro amador, que o Vinícius chamou de coro da amizade

Era o que o nome dizia, um coro de amigos que não eram cantores,

e esse é o coro de Canto de Ossanha

E não é a única participação inusitada:

quem divide o canto com Vinicius na primeira parte da música é a atriz Betty Faria, então com 25 anos

A forma de Canto de Ossanha é ABCB, sendo que o segundo B é um pouco maior do que o primeiro

e tem também uma modulação, a música muda de tom por alguns compassos,

vai de ré maior para fá maior e volta

Por falar em tom, Canto de Ossanha usa uma forma muito comum em sambas tradicionais:

as primeiras partes são em tom menor, e as segundas em tom maior

É o mesmo caso, por exemplo, de Chega de Saudade,

mas isso quase não acontece em canções ditas mais bossanovísticas,

mais representativas da Bossa Nova

A introdução começa só com o violão e o afoxé

A flauta tocada por Copinha faz uma frase descendente e outra ascendente

A bateria tocada no aro da caixa é muito bossa nova

Os dois saxofones fazendo frases descendentes curtas e repetitivas

A harmonia é cíclica,

os acordes vão se repetindo a cada 4 compassos,

cria uma atmosfera de transe

A dinâmica cai, sai a bateria,

e começa a crescer lentamente para a entrada do refrão em tom maior

O coro da amizade canta os refrões

Sai o violão e os saxes tocam a melodia em oitavas

Volta a harmonia cíclica e as frases descendentes dos saxes

Frases de flauta preparando para o refrão

O refrão muda de tom, sobe um tom e meio

E volta pro tom original com solo improvisado da flauta de Copinha

Os saxes voltam na preparação para o refrão

De novo a modulação no refrão com frases improvisadas na flauta

Voltam as frases descendentes do sax, com frases de flauta

E termina no tom maior

Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,

e pense na possibilidade de ser um apoiador do programa, a partir de 10 reais, no apoia.se/oarranjo

Muito obrigado, até uma próxima


Canto de Ossanha, O ARRANJO #16 (English subtitles)

Em 1962, o ano em que a Bossa Nova se mudou para os Estados Unidos,

Vinicius de Moraes conheceu um dos seus parceiros mais importantes: Baden Powell

Encantado com a técnica e a musicalidade do jovem violonista,

Vinícius fez o convite para eles virarem parceiros

Baden foi com o violão pra casa do poeta sem imaginar que os dois ficariam 90 dias seguidos fechados,

compondo e bebendo, bebendo e compondo

O saldo de bebidas, orgulhosamente computado por Vinícius,

é de 20 caixas de uísque, ou 240 garrafas

Já o saldo musical é incálculável:

foram por volta de 20 canções, mas surgiu ali o embrião,

ali foi a gênese do que, poucos anos depois, seria conhecido por uma sigla: MPB

Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem-vindo

Se você está gostando de assistir aos episódios, pense na possibilidade de apoiar a série O ARRANJO e

assim, colaborar pra eu manter o programa. A partir de apenas 10 reais!

Acesse apoia.se/oarranjo

Canto de Ossanha foi composta nessa primeira leva de canções da dupla,

junto com quase todos os Afro sambas e clássicos como Consolação e Samba em Prelúdio

Entre essa grande temporada que os dois passaram juntos compondo e a gravação do disco Afro Sambas

se passaram 4 anos, o disco só foi gravado em 1966

O produtor musical Roberto Quartin fundou o selo Forma nos anos 1960

e produziu discos essenciais do período, como o Coisas de Moarcir Santos e o Afro sambas

Foi de Quartin a ideia de reunir os Afro sambas ainda não gravados em um disco,

então ficaram de fora alguns dos Afro sambas mais conhecidos, como Berimbau e Samba da Benção

Ficou combinado que os artistas teriam o máximo de liberdade criadora

com um mínimo de interesse comercial, como Vinicius escreveu na contracapa do disco

Pensaram numa estética mais espontânea, relaxada,

menos preocupada com o rigor técnico da gravação

O disco Afro Sambas foi gravado entre os dias 3 e 6 de janeiro de 1966 em um estúdio de 2 canais,

que ficava em um porão no centro do Rio de Janeiro,

que estava alagado por uma chuva torrencial de verão

Segundo Baden, eles gravaram em cima de caixas de cerveja e uísque,

que eles mesmos tinham consumido

Com arranjo do Maestro Guerra Peixe, é a versão de Canto de Ossanha desse disco que eu vou analisar

UM POUCO DE HISTÓRIA

Robert Baden Powell nasceu em Londres, em Fevereiro de 1857 e foi tenente-general do exército britânico

A sua alta patente no exército foi conquistada, sobretudo

por sua incursão na África defendendo as colônias britânicas,

ou seja, lutando contra os povos originários do continente

Entre os seus feitos está a execução de um líder dos Zulus, Uwini,

que tinha se rendido aos ingleses em troca de ter a sua vida poupada

Criou um manual para jovens militares que deu origem ao escotismo,

que rapidamente se espalhou para jovens do mundo inteiro

Na pequena cidade de Varre-e-sai, no interior do estado do Rio de Janeiro,

o sapateiro e multi-instrumentista amador Lilo de Aquino é um escoteiro e fã do militar Britânico

Quando nasce o seu único filho homem, em 1937,

o batiza de Baden Powell de Aquino

A família se muda para o Rio de Janeiro, no subúrbio,

e muito cedo Baden começa a mostrar um grande talento para o violão

Com 8 anos começa a ter aulas de violão erudito com Jayme Florence, conhecido como Meira,

um grande violonista, que tocava no regional de Benedito Lacerda

Baden ia na casa de Meira ter as aulas, e costumava ficar por lá depois,

quando Meira recebia amigos músicos para rodas de choro, um gênero musical de difícil execução

e que contribuiu muito para formar o músico Baden Powell

Na biografia de Baden escrita por Dominique Dreyfus está assim a síntese do músico:

"Clássico pela formação musical, sambista e chorão por suas raízes profundas

e jazzista por geração - um coquetel muito brasileiro"

"Quando eu tinha os meus 15, 16 anos, eu já tinha passado por tudo.

Acompanhar não importa o que, se fosse cantor italiano,

ou sei lá, o que for, eu tava pronto pra fazer

E isso já muito cedo, eu tava pronto"

Com 16 anos compõe a sua primeira música profissional:

Samba Triste, em parceria com Billy Blanco, que foi lançada por Lúcio Alves

Baden era um dos violonistas e guitarristas mais requisitados no Rio de Janeiro

nos anos 1950 e início dos 60

tocava em boates de prestígio, tocava nas principais rádios,

gravava discos e acompanhava os principais nomes da música no Brasil

E foi acompanhando a cantora Silvinha Telles que ele faz a sua primeira viagem a Salvador, Bahia

Em Salvador ele visita terreiros de candomblé, com muito interesse pela religiosidade em si,

mas também muito interessado na música dos terreiros

"Ele sempre foi muito ligado na religiosidade africana

Ele teve esse interesse de ir à Bahia, conhecer os candomblés,

conhecer os toques dos ogãs, pra conhecer os cantos dos orixás"

Essa pesquisa que Baden fez foi fundamental quando surgiu a oportunidade que mudou a sua vida:

o seu encontro com Vinícius de Moraes

"Eu dei o meu endereço a ele, eu morava no Parque Guinle

E dias depois ele apareceu

Então foi uma lenha, porque nós passamos praticamente 4 meses encerrados,

praticamente sem sair de casa

Eu acho que nesses 4 meses nós fizemos mais de 2/3 do nosso repertório"

Vinícius, na época, estava impressionado com o disco "Sambas de Roda e Candomblé da Bahia",

que ele tinha ganhado de presente do compositor, jornalista e jurista Carlos Coqueijo

eram exatamente os cantos dos terreiros baianos

Quando Vinicius e Baden se encontraram, eles estavam impregnados da cultura afro baiana

"Nós estávamos falando sobre a Bahia, eu também já conhecia um pouco essa coisa de candomblé,

Vinicius também, eu tinha mais acesso a isso porque eu era do subúrbio e tal, Vinicius era diplomata,

eu sabia dos negócios de candomblé

e conversando sobre isso eu compus junto com Vinicius assim, batendo papo

Quando terminou a série das 9 músicas, Vinicius gritou e falou assim

puxa, Baden, isso aqui são os afro-sambas!"

Os Afro sambas indicam o caminho que a música brasileira tomaria a partir do meio dos anos 1960,

a partir dos festivais da canção:

a apropriação do folclore não mais para o campo do erudito,

como por exemplo Villa Lobos fez tão bem,

mas sim para o campo da cultura de massa, do rádio, da televisão:

a Música Popular Brasileira

"Em relação aos Afro sambas, aquilo era um desenvolvimento da Bossa Nova,

aquilo já era uma outra corrente, era uma outra história

Já não era mais pra ser chamado de Bossa Nova"

1\\. MELODIA

Baden Powell estudava com Guerra Peixe quando notou a similaridade

entre os cantos afro-baianos e os cantos gregorianos,

e começou a compor em cima desses modos

"Tem um samba que tem um, é um samba mais escuro, mais negro,

entendeu, tem raízes mais negras

É um tipo de samba que é assim, um samba lamento, tem um lamento

Esse samba é o que tem as raízes mais próximas ao afro, por causa do estilo do cântico,

que vem dos cantos gregorianos

Os cantos gregorianos, quem trouxe pro Brasil foram os Jesuítas, quando vieram catequisar os índios aqui

Então isso tudo tem uma ligação muito grande"

Baden estudava muito, horas por dia no violão,

e ia criando exercícios que viravam as suas composições com um estilo próprio,

com muitos arpejos, melodias que surgem mesmo do instrumento

Os temas de Baden, de inspiração modal,

conduzem as letras do Vinicius para bem longe da sua poesia escrita

As letras vão para uma direção menos discursiva, menos argumentativa,

ficam impessoais, são praticamente cantos coletivos, com repetições, respostas,

o que é muito comum em canções folclóricas e de rituais

Uma das características de Vinicius como letrista é ser camaleônico,

sa adaptar aos temas, entender o que a música está pedindo, qual letra, quais palavras

As letras dos Afro sambas são cruas, diretas, quase o oposto das letras da Bossa Nova,

e Vinicius escreveu a maior parte dessas letras no mesmo ano em que escreveu Garota de Ipanema

O orixá Ossanha, também conhecido como Ossain, é o orixá das folhas sagradas, medicinais,

só ele detém o conhecimento sobre como usar essas folhas

Sem as folhas e os seus segredos não há axé, portanto sem ele nenhuma cerimônia é possível

Vinicius trabalhou com mitos sobre os orixás para escrever as letras,

como me disse o escritor e historiador Luiz Antônio Simas

"No Canto de Ossanha ele está trabalhando ali dois mitos,

dois mitos que são relativamente conhecidos na cultura de candomblé

É um mito que envolve uma disputa entre Ossanha e Xangô a respeito do conhecimento das folhas

Na letra de Vinicius inclusive é Xangô que alerta contra Ossanha

E a letra é muito fundamentada numa história muito famosa de terreiro de candomblé,

que é a história do canto de Ossain

É como Ossanha engana um rei pra se casar com uma das filhas do rei

cantando de uma maneira que parecesse que ele era um pássaro, e não Ossain

Então Vinicius trabalha esses dois mitos, ele não vai além disso, e nesse sentido é interessante

O Vinicius no Canto de Ossanha ele cruza esse mito de Ossanha com a obsessão que ele tinha,

daquela dicotomia Viniciana entre amor e dor, né?"

Amor só é bom se doer, escreve Vinicius nessa letra

E repete, com a ajuda do coro: vai, vai, vai amar, vai sofrer, vai chorar

No último verso, pra terminar brilhantemente a canção,

a melodia dá um salto de oitava, o coro canta com toda a força e resume talvez todo o disco:

vai viver!

2\\. ORQUESTRAÇÃO

Guerra Peixe foi um compositor e arranjador muito importante para a música brasileira

Era um pesquisador, um folclorista, um conhecedor do folclore brasileiro como poucos

A orquestração que ele definiu para o disco Afro sambas é inédita:

além da base com o violão do Baden mais baixo e bateria,

tem sax tenor, sax barítono e flauta

E um naipe que não se via há muitos anos em gravações:

um naipe de percussões ditas "de terreiro",

que tinha sido usado pela primeira e única vez em 1930

"Mas aí ele vem com atabaques, bongô, pandeiro, tem agogô e tem um afoxé

Esses instrumentos que o Guerra Peixe traz pro Canto de Ossanha, os percussivos,

foram exatamente os mesmos usados no 'Na Pavuna', que é a batucada que o Almirante grava

E o Guerra Peixe, curiosamente, curiosamente não, ele sabia obviamente o que ele tava fazendo,

o Guerra Peixe traz rigorosamente a mesma estrutura de percussão da gravação de 'Na Pavuna', do Almirante,

que é um marco na história da música brasileira

porque foi a primeira que levou para o estúdio essa pegada mais percussiva"

Esses instrumentos tinham desaparecido do que Simas chama de samba fonográfico,

ou seja, o samba gravado, porque dos terreiros de samba eles nunca tinham saído

Essa junção dos instrumentos de sopro com instrumentos de percussão segue hoje, por exemplo,

na Orquestra Rumpillez, criada em Salvador, Bahia, em 2006 pelo maestro Letieres Leite

3\\. A FORMA DO ARRANJO

Apesar de contar com as cantoras do Quarteto em Cy no disco,

em duas músicas há a presença de um coro amador, que o Vinícius chamou de coro da amizade

Era o que o nome dizia, um coro de amigos que não eram cantores,

e esse é o coro de Canto de Ossanha

E não é a única participação inusitada:

quem divide o canto com Vinicius na primeira parte da música é a atriz Betty Faria, então com 25 anos

A forma de Canto de Ossanha é ABCB, sendo que o segundo B é um pouco maior do que o primeiro

e tem também uma modulação, a música muda de tom por alguns compassos,

vai de ré maior para fá maior e volta

Por falar em tom, Canto de Ossanha usa uma forma muito comum em sambas tradicionais:

as primeiras partes são em tom menor, e as segundas em tom maior

É o mesmo caso, por exemplo, de Chega de Saudade,

mas isso quase não acontece em canções ditas mais bossanovísticas,

mais representativas da Bossa Nova

A introdução começa só com o violão e o afoxé

A flauta tocada por Copinha faz uma frase descendente e outra ascendente

A bateria tocada no aro da caixa é muito bossa nova

Os dois saxofones fazendo frases descendentes curtas e repetitivas

A harmonia é cíclica,

os acordes vão se repetindo a cada 4 compassos,

cria uma atmosfera de transe

A dinâmica cai, sai a bateria,

e começa a crescer lentamente para a entrada do refrão em tom maior

O coro da amizade canta os refrões

Sai o violão e os saxes tocam a melodia em oitavas

Volta a harmonia cíclica e as frases descendentes dos saxes

Frases de flauta preparando para o refrão

O refrão muda de tom, sobe um tom e meio

E volta pro tom original com solo improvisado da flauta de Copinha

Os saxes voltam na preparação para o refrão

De novo a modulação no refrão com frases improvisadas na flauta

Voltam as frases descendentes do sax, com frases de flauta

E termina no tom maior

Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,

e pense na possibilidade de ser um apoiador do programa, a partir de 10 reais, no apoia.se/oarranjo

Muito obrigado, até uma próxima