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Gloss Brazilian Portuguese Level 3, Intervenção militar no Rio

Intervenção militar no Rio

A intervenção federal no Rio de Janeiro deixa as Forças Armadas pela primeira vez no comando total da segurança de um Estado brasileiro. Mas para a ministra do Supremo Tribunal Militar Maria Elizabeth Rocha, os militares não devem ser culpabilizados caso a estratégia não tenha o efeito desejado.

(1) BBC Brasil - Como vê a intervenção militar no Rio de Janeiro?

Rocha - Eu não vou discutir se a decisão política do Poder Executivo foi acertada ou não. Ela foi feita dentro dos parâmetros constitucionais - porque a nossa Constituição prevê e autoriza a intervenção federal e, como cidadã, espero que ela dê resultado. Mas, para isso, precisa haver um plano de intervenção que não seja simplesmente colocar as Forças Armadas nas ruas para combater a criminalidade. É preciso que haja comunicação entre as polícias e as Forças Armadas para conseguir salvar o Rio de Janeiro.

(2) BBC Brasil - Alguns especialistas criticaram a falta de estratégias prévias à decisão da intervenção militar. O próprio general Braga Netto, nomeado como interventor, disse, ao assumir o posto, que agora começará o planejamento. A decisão foi apressada, em sua opinião?

Rocha - Eu acho que a situação no Rio de Janeiro é tão calamitosa que esse plano de intervenção já deveria estar sendo gestado há algum tempo no governo federal, se é que a intervenção é a melhor resposta. É de se estranhar que ainda não haja plano. Como todo cidadão brasileiro, eu estou aguardando pra ver. Vai ter que haver investimento, capacitação, porque a segurança pública acabou no Rio. Só acho que depois não dá para culpar os militares se não der certo. Os militares estão subordinados ao poder civil.

(3) BBC Brasil - Mas o interventor nomeado para o Rio é um militar. Não vai ser difícil para as pessoas não culparem os militares se algo der errado?

Rocha - Pois é. Mas o militar cumpre ordens. Esse plano de intervenção tem que vir de cima para baixo. Eles estão lá para cumprir a missão, mas é preciso dizer especificamente qual é a missão. Porque a missão não é sair com um fuzil no meio da rua e barbarizar o cidadão, não é sair com o fuzil e subir o morro. Eu sempre fui contra as GLO (operações de Garantia da Lei e da Ordem, que permitem a atuação das Forças Armadas na segurança pública, excepcionalmente, em momentos de grave perturbação da ordem). Sempre achei que o papel das Forças Armadas não é o de capitão do mato, de fazer segurança pública. As Forças Armadas têm uma missão completamente diferente, estão lidando com a soberania do Estado. Defendem fronteiras, trabalham em missões humanitárias, na defesa da nossa biodiversidade. O Brasil está caminhando como o México, que colocou todos os seus militares para fazer papel de polícia. Isso me preocupa. Primeiro porque estou vendo que os militares estão sendo usados politicamente, o que é um problema. E depois porque os militares foram treinados para lidar com a guerra. Isso é diferente do papel da polícia, que tem uma interface comunitária, de tentar apaziguar conflitos.

(4) BBC Brasil - Críticos também dizem que uma intervenção federal de natureza militar prejudica a execução de outras atividades de responsabilidade das Forças Armadas. Isso pode realmente acontecer?

Rocha - Com certeza. Os contingentes militares hoje não são muito grandes, sobretudo se considerarmos a dimensão do Brasil, as Forças Armadas não estão aparelhadas como deveriam, porque os cortes orçamentários são imensos, e ainda vão perder grande parte dos seus homens, que vão para uma missão que não é exatamente aquela para a qual eles foram preparados. O policiamento de fronteiras pode ser prejudicado, mas é por isso que precisamos ver o plano de ação - para saber quais batalhões serão deslocados, quais militares vão participar da operação, de onde vai sair o dinheiro, etc. O gesto simbólico de transferir a responsabilidade da segurança pública de um Estado inteiro para as Forças Armadas já é, por si só, o pior dos cenários. A intervenção tem que dar certo ou tem que dar certo. Não há outra alternativa. E se der errado ou se começarem a acontecer mortes, os militares vão ser questionados e atacados.

(5) BBC Brasil - Um dos argumentos contra a nomeação de um general como interventor é o de que ele só poderia ser julgado pela Justiça Militar, tida por muitos como corporativista. Você acha que isso pode ser um problema?

Rocha - Pelo contrário, a Justiça Militar não tem nada de corporativista. Eu falo isso com tranquilidade porque, além de ser uma civil, sou um dos magistrados que mais absolve aqui nesse tribunal. É uma Justiça muito dura, muito rigorosa. Eu acho os índices de condenação da Justiça militar, sinceramente, muito altos. Acho que poderíamos usar mais de política criminal, absolver mais. Mas a quebra da hierarquia e da disciplina para os militares é algo impensável. Até compreendo que eles pensem assim. Homens armados, dotados do monopólio da força legítima que o Estado investiu, se insubordinarem é o caos e a repetição do que não queremos mais que aconteça. Muita gente se surpreende com o rigor das punições, até para falhas menores como um cigarrinho de maconha, que na Justiça comum seriam desconsideradas. Aqui a pessoa deixa de ser réu primário, fica comprometida durante cinco anos, que é o tempo que ela precisa para frequentar a reabilitação e ter a ficha novamente limpa. Veja a ironia. O massacre do Carandiru foi julgado por um tribunal civil, mas somente 22 anos depois, quando vários crimes prescreveram. E o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu os comandantes. O mesmo aconteceu no Massacre de Eldorado dos Carajás - em que 55 militares foram denunciados e dois foram condenados. A Justiça civil absolve, não o tribunal militar.


Intervenção militar no Rio Military intervention in Rio

A intervenção federal no Rio de Janeiro deixa as Forças Armadas pela primeira vez no comando total da segurança de um Estado brasileiro. Mas para a ministra do Supremo Tribunal Militar Maria Elizabeth Rocha, os militares não devem ser culpabilizados caso a estratégia não tenha o efeito desejado.

**(1) BBC Brasil** - Como vê a intervenção militar no Rio de Janeiro?

**Rocha** - Eu não vou discutir se a decisão política do Poder Executivo foi acertada ou não. Ela foi feita dentro dos parâmetros constitucionais - porque a nossa Constituição prevê e autoriza a intervenção federal e, como cidadã, espero que ela dê resultado. Mas, para isso, precisa haver um plano de intervenção que não seja simplesmente colocar as Forças Armadas nas ruas para combater a criminalidade. É preciso que haja comunicação entre as polícias e as Forças Armadas para conseguir salvar o Rio de Janeiro.

**(2) BBC Brasil** - Alguns especialistas criticaram a falta de estratégias prévias à decisão da intervenção militar. O próprio general Braga Netto, nomeado como interventor, disse, ao assumir o posto, que agora começará o planejamento. A decisão foi apressada, em sua opinião?

**Rocha** - Eu acho que a situação no Rio de Janeiro é tão calamitosa que esse plano de intervenção já deveria estar sendo gestado há algum tempo no governo federal, se é que a intervenção é a melhor resposta. É de se estranhar que ainda não haja plano. Como todo cidadão brasileiro, eu estou aguardando pra ver. Vai ter que haver investimento, capacitação, porque a segurança pública acabou no Rio. Só acho que depois não dá para culpar os militares se não der certo. Os militares estão subordinados ao poder civil.

**(3) BBC Brasil** - Mas o interventor nomeado para o Rio é um militar. Não vai ser difícil para as pessoas não culparem os militares se algo der errado?

**Rocha** - Pois é. Mas o militar cumpre ordens. Esse plano de intervenção tem que vir de cima para baixo. Eles estão lá para cumprir a missão, mas é preciso dizer especificamente qual é a missão. Porque a missão não é sair com um fuzil no meio da rua e barbarizar o cidadão, não é sair com o fuzil e subir o morro. Eu sempre fui contra as GLO (operações de Garantia da Lei e da Ordem, que permitem a atuação das Forças Armadas na segurança pública, excepcionalmente, em momentos de grave perturbação da ordem). Sempre achei que o papel das Forças Armadas não é o de capitão do mato, de fazer segurança pública. As Forças Armadas têm uma missão completamente diferente, estão lidando com a soberania do Estado. Defendem fronteiras, trabalham em missões humanitárias, na defesa da nossa biodiversidade. O Brasil está caminhando como o México, que colocou todos os seus militares para fazer papel de polícia. Isso me preocupa. Primeiro porque estou vendo que os militares estão sendo usados politicamente, o que é um problema. E depois porque os militares foram treinados para lidar com a guerra. Isso é diferente do papel da polícia, que tem uma interface comunitária, de tentar apaziguar conflitos.

**(4) BBC Brasil** - Críticos também dizem que uma intervenção federal de natureza militar prejudica a execução de outras atividades de responsabilidade das Forças Armadas. Isso pode realmente acontecer?

**Rocha** - Com certeza. Os contingentes militares hoje não são muito grandes, sobretudo se considerarmos a dimensão do Brasil, as Forças Armadas não estão aparelhadas como deveriam, porque os cortes orçamentários são imensos, e ainda vão perder grande parte dos seus homens, que vão para uma missão que não é exatamente aquela para a qual eles foram preparados. O policiamento de fronteiras pode ser prejudicado, mas é por isso que precisamos ver o plano de ação - para saber quais batalhões serão deslocados, quais militares vão participar da operação, de onde vai sair o dinheiro, etc. O gesto simbólico de transferir a responsabilidade da segurança pública de um Estado inteiro para as Forças Armadas já é, por si só, o pior dos cenários. A intervenção tem que dar certo ou tem que dar certo. Não há outra alternativa. E se der errado ou se começarem a acontecer mortes, os militares vão ser questionados e atacados.

**(5) BBC Brasil** - Um dos argumentos contra a nomeação de um general como interventor é o de que ele só poderia ser julgado pela Justiça Militar, tida por muitos como corporativista. Você acha que isso pode ser um problema?

**Rocha** - Pelo contrário, a Justiça Militar não tem nada de corporativista. Eu falo isso com tranquilidade porque, além de ser uma civil, sou um dos magistrados que mais absolve aqui nesse tribunal. É uma Justiça muito dura, muito rigorosa. Eu acho os índices de condenação da Justiça militar, sinceramente, muito altos. Acho que poderíamos usar mais de política criminal, absolver mais. Mas a quebra da hierarquia e da disciplina para os militares é algo impensável. Até compreendo que eles pensem assim. Homens armados, dotados do monopólio da força legítima que o Estado investiu, se insubordinarem é o caos e a repetição do que não queremos mais que aconteça. Muita gente se surpreende com o rigor das punições, até para falhas menores como um cigarrinho de maconha, que na Justiça comum seriam desconsideradas. Aqui a pessoa deixa de ser réu primário, fica comprometida durante cinco anos, que é o tempo que ela precisa para frequentar a reabilitação e ter a ficha novamente limpa. Veja a ironia. O massacre do Carandiru foi julgado por um tribunal civil, mas somente 22 anos depois, quando vários crimes prescreveram. E o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu os comandantes. O mesmo aconteceu no Massacre de Eldorado dos Carajás - em que 55 militares foram denunciados e dois foram condenados. A Justiça civil absolve, não o tribunal militar.