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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 8. Democracia - Part 1

8. Democracia - Part 1

Eu sou o Tiago Rogero, este é o podcast do Projeto Querino, produzido pela Rádio Novelo.

E aqui já é a casa principal, né?

Esse complo que você tá vendo aqui, ó, era o famoso quartinho escuro da casa.

Aí é onde o pessoal tem a capela, os barões iam participar da missa e os escravos ficavam

aqui pra participar da missa.

Essa fazenda foi fundada em 1784.

Fica perto de uma cidade do interior de Minas Gerais chamada Cruzília.

Esse que tava conversando comigo é o atual gerente da fazenda, o Aldivan da Silva.

No passado, a fazenda pertencia aos Junqueira, uma família tradicional mineira.

Gente muito rica.

O nome da fazenda é Bela Cruz.

E da família antiga, o que era esse zambi?

Por exemplo, o quarto principal ficava pra lá, pra cá?

Conta a história, eu não sei te falar exato, mas conta a história que o homem foi assassinado

nesse quarto que tá aqui.

Que tem, eu não sei se você já leu lá, que quando fizeram a revolta de Carrancas,

e aí vieram os escravos florescidos, matou todo mundo que tá aqui na casa e, inclusive,

o filho, que é o, acho que chama o José Francisco Junqueira, que ele se trancou no

quarto e um dos escravos cortou a porta a golpe de machado e o cavaleiro catou a garrocha

e matou ele na garrocha, né?

A tiro de garrocha.

Um dia, em 1833, na hora em que o senhor chegou à roça pra monitorar o trabalho, ele foi

assassinado.

Morto pelos escravizados dele.

Esse homem era um juiz de paz e também era filho de um deputado federal.

O deputado é que era o dono das fazendas.

Ele só não tava lá na hora da revolta porque tava na corte no Rio de Janeiro.

O nome do deputado era Gabriel Francisco Junqueira.

Ao todo, os escravizados mataram nove pessoas da família dele, entre elas três crianças.

O caso ficou conhecido como a Revolta de Carrancas, que era o nome dessa região de Minas Gerais

na época.

Bom, eu sou Rogério Padana Cano, hoje eu sou o proprietário aqui da Fazenda Bela Cruz.

A família do Rogério não tem nada a ver com a revolta.

Eles compraram a fazenda em meados dos anos 2000 de um descendente dos Junqueira.

E foi muito interessante porque meu pai gosta de fuçar essa parte histórica, daí ele

achou um inquérito policial da época da Revolta de Carrancas.

É um inquérito policial bem grande e bem detalhista de como eles encontraram a região.

E daí a gente começou a ficar muito curioso pela história da fazenda por conta disso,

porque foi uma revolta bem marcante e violenta.

E ela foi violenta porque tinha uma razão aqui, e daí isso acaba explicando muito como

as coisas eram aqui.

Os relatos históricos demonstram que era uma situação muito difícil pros escravos e

tudo mais.

A revolta só foi abafada quando os escravizados seguiram pra uma terceira fazenda.

Foram mortos o líder do movimento, o nome dele era Ventura Mina, e outros quatro escravizados.

Isso tudo foi num 13 de maio.

13 de maio.

Outros 31 escravizados que sobreviveram foram acusados de participar do levante.

16 deles foram executados depois de terem sido condenados à pena de morte.

E isso era algo muito fora da curva pra casos assim.

Essa quantidade de gente condenada à pena capital.

É que o período da escravidão tinha essa dicotomia muito louca.

Por mais que pessoas escravizadas não fossem tratadas nem como seres humanos, elas eram

um bem valioso demais pro senhor.

A ideia que eles tinham do escravo rebelde era que o rebelde de um dia é preso, punido,

e no outro dia ele é colocado pra cortar cana.

E este é o João José Reis.

Eu sou professor da Universidade Federal da Bahia e sou historiador, escritor.

E ele tá lembrando que o senhor de escravos preferia mil vezes castigar o escravizado

do que simplesmente matar.

Embora às vezes o castigo era tanto que acabava levando à morte também.

Era uma propriedade muito preciosa pra estar sendo presa, cumprir pena, ser castigada e

muito menos executada.

E no caso da Revolta de Carrancas, como você ouviu, não foi um escravizado que foi executado.

Foram 16.

Fora os cinco que já tinham morrido no dia do confronto.

O historiador Marcos Ferreira de Andrade, estudioso da Revolta de Carrancas, já escreveu

que a explicação mais razoável pra essa quantidade de condenações à morte é o

fato de terem assassinado vários membros de uma família senhorial ligada à elite política

liberal moderada do Império, que dava as cartas do jogo político naquele contexto.

O massacre que se abateu sobre os Junqueiras trouxe pânico às elites regionais, ao parlamento

e à regência.

Aquele era o período das regências, né?

A década de 1830.

O Dom Pedro I tinha abdicado do trono em 31, o filho dele ainda era só uma criança e

o governo estava sendo revezado nas mãos da classe política.

Era um momento de tensão em todo o país, né?

De novo aqui, o João José Reis.

Um período em que pipocaram revoltas regionais em diversos pontos do país.

Agora é muito importante que esse é um período que há um acúmulo, digamos assim, de uma

onda muito grande de importação de escravizados africanos.

E a gente falou sobre isso nos dois primeiros episódios.

Na euforia da independência, na gana, na ambição desenfreada, os escravistas trouxeram

muito mais gente escravizada para o Brasil.

Quando começaram os tratados com a Inglaterra para proibir o tráfico, os senhores compraram

ainda mais para poder fortalecer o estoque.

Foi um volume tão grande que pressiona as tensões entre os escravos, tanto que nesse

período que vai entre 1826 e 1831, ocorrem 16 revoltas ou conspirações.

E isso só na Bahia.

Teve muita insurreição na Bahia nesse período.

A maior e mais famosa delas foi em 1835.

A Revolta dos Malês foi uma revolta de africanos, tanto africanos escravizados como africanos

libertos.

A Revolta de 1835 foi a 31ª, alguma coisa assim, das revoltas.

Então havia uma tradição rebelde importante.

O João José Reis escreveu um livro incrível sobre a revolta.

Rebelião Escrava no Brasil.

A história do levante dos malês em 1835.

Ela foi organizada por negros malês.

Malês eram os africanos de origem urubá, portanto nagois, e que vinham da região da

Costa da Mina.

A Costa da Mina é um litoral que hoje em dia pertence ao Toho, República do Benin

e Nigéria.

Malê era a forma como eram chamados os africanos que eram muçulmanos.

E a Revolta dos Malês ganhou esse nome porque foi organizada por muçulmanos.

Tudo começou na madrugada de um 25 de janeiro.

Porque houve uma denúncia e a polícia saiu batendo na porta daqueles lugares apontados

como sendo locais de reunião de africanos.

E a polícia chega realmente num local onde havia um grande grupo reunido.

E quando a polícia entra nesse local, os africanos que lá estavam reunidos saem armados

e tem uma primeira pequena batalha entre cerca de 60 rebeldes e a polícia.

Então a partir daí, há uma dispersão desses rebeldes.

Eles se dispersaram pela cidade, por Salvador.

Esses homens saem pela cidade gritando que estava na hora de se levantar e outros africanos

foram aderindo.

Eles percorrem uma área muito grande da cidade de Salvador e o que se ouviu ser gritado

nas ruas da cidade foi morte aos brancos, viva Nagô.

Só que no meio do caminho ficava o quartel da cavalaria.

Os soldados montados atacaram esses rebeldes que estavam saindo da cidade.

Quando houve uma última batalha ali, que foi a mais sangrenta, morreram cerca de 70,

talvez mais, africanos.

E a revolta basicamente terminou aí.

Centenas de pessoas foram presas e 15 foram condenadas à morte.

Mas houve a comutação da maioria dessas penas.

Foi transformada em outras penas como chibatada ou até absorvição no segundo júri que

houve e quatro pessoas foram executadas, foram fuziladas.

Deveriam ter sido enforcadas, mas não se encontrou ninguém que pudesse servir, que

aceitasse servir como carrasco.

Outras dezenas de pessoas foram expulsas do Brasil.

Mas só pessoas que já eram livres, nenhum escravizado.

Porque o escravo era uma mercadoria, então não ia simplesmente expulsar, porque ia prejudicar

os senhores, mas as pessoas que foram expulsas eram ex-escravos, libertos africanos e foram

expulsas de volta para a África.

E essas duas revoltas, a de Carrancas e a dos Malês, acabaram tendo um impacto enorme

na legislação do período.

Houve uma consequência muito grande em leis locais, sobretudo na corte, mas também em

todas as províncias de modo geral, que enrijeceram o controle não apenas dos escravizados, mas

também dos libertos africanos.

Reforçaram o controle e a repressão à população negra de modo geral.

E obviamente não eram as pessoas negras que faziam essas leis.

Tinha um ou outro caso de algum político afrodescendente, que à época podia ser lido

como mulato, como pardo, mas a classe política era majoritariamente branca, rica e comprometida

com a escravidão.

Boa parte dos deputados e senadores eram senhores de escravos.

Dom Pedro tinha caído, muita gente tentou radicalizar o momento, indo para o confronto

agônico, inclusive os escravizados.

Este é o Tâmis Pahom, historiador e professor, que a gente ouviu no segundo episódio.

Essa polarização popular empurra os conservadores para um eixo comum.

Ela apura o senso de coesão, solidariedade e autopreservação entre os donos do dinheiro

e do patrimônio das riquezas privadas.

Você tem aquele momento de mobilização no Brasil, mas a coligação das forças joga

a favor da reação e não da realização dos anseios das classes subalternas e populares.

Esse pessoal apostou no aumento da escravidão e reabriu o tráfico negreiro em larga escala,

fez tudo isso ao mesmo tempo.

E aí a gente chega naquele momento do total desrespeito à lei de 1831, quando o tráfico

de escravizados estava proibido, mas continuou com força total num grande acordo nacional.

São mais 19 anos de tráfico ilegal, de um dos maiores casos, se não o maior caso,

de corrupção sistêmica da história do Brasil.

Até que uma nova lei, em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz, finalmente pôs fim ao tráfico,

quase 20 anos depois da Lei de 1831.

E um alinhamento muito especial de forças para que essa lei passasse.

E por trás disso estava de novo a Inglaterra, o principal império do mundo naquele momento,

que nas décadas anteriores já tinha lucrado muito com a escravidão e com o tráfico,

mas que continuava com objetivos econômicos, atuando pelo fim do comércio negreiro.

A Inglaterra já estava participando da negociação de uma série de tratados que acabaram com

o tráfico em vários dos nossos países vizinhos, Chile, Venezuela, Uruguai, México.

Isso foi deixando o Brasil cada vez mais isolado no cenário internacional.

Daí em 1945, o parlamento britânico subiu o tom e aprovou uma lei, e a gente aprendeu

que a maior escravidão que tinha lá na escola é a Bill Aberdeen, que considerou

o tráfico marítimo de escravizados pirataria, e deu autorização para a Marinha Britânica

apreender esses navios.

Ela patrulhou as águas territoriais brasileiras, ela desembarcou, Thiago, marinheiro em terra

brasileira, sem permissão do governo brasileiro.

Ela abriu o porto do Rio de Janeiro, deixou os navios de guerra alinhados, deixando passar

só o navio que era obviamente destinado à Europa e parando todos os outros.

Em 1849 e 1850, a Grã-Bretanha já tinha tomado ou destruído pelo menos dez navios

brasileiros, todos em águas territoriais brasileiras e alguns até ancorados nos portos.

Aí o Brasil declarou guerra.

Não a Grã-Bretanha, porque não é bobo ao tráfico.

Em fevereiro de 1850, os políticos brasileiros concluíram que a única maneira de contornar

a situação e de evitar uma guerra era acabando de vez com o tráfico, cortando na própria

carne.

Quem assinou o parecer foi o ministro da Justiça, o Eusebio de Queiroz.

Por isso que a lei tem o nome dele.

Sem o perigo permanente de uma guerra contra a Grã-Bretanha, o maior poder marítimo e

militar da época, as elites do Brasil não teriam largado o osso, literalmente os ossos,

o sangue, os músculos daquelas pessoas livres trazidas como escravizadas ilegalmente para

o país.

Não teria largado.

Então se você tirar a Grã-Bretanha dessa equação, esquece.

Não tem fim do tráfico no grego.

Mas uma coisa que a gente não pode esquecer é o impacto que todas aquelas revoltas de

escravizados já estavam tendo sobre a classe política, sobre a população.

Porque os africanos, depois da Revolta de 35, como se não já bastassem as outras revoltas,

começaram a ser vistos e definidos como bárbaros, que em qualquer momento podia se levantar,

matar suas miras e assim por diante.

E quando o João José Reis fala nessas outras revoltas, a gente pode pensar não só nas

da Bahia ou na de Carrancas, em Minas, mas também nas outras tantas que estavam acontecendo

em outras partes do Brasil.

Em 38, por exemplo, na região de Vassouras, no Rio, estourou a revolta liderada pelo Manuel

Congo.

Centenas de escravizados fugiram de duas fazendas e se separaram em uma pequena região, que

se chamava de Mato Grosso.

O governo de João José Reis, que era o primeiro presidente da República,

foi exilado em 1932.

O governo de João José Reis, que era o primeiro presidente da República,

foi exilado em 1932.

A polícia descobriu um plano gigantesco de insurreição que ficou conhecido como

a Conspiração de 48.

A ideia era matar todos os senhores e tomar o poder.

E isso tudo a menos de 150 quilômetros da corte.

Por isso que, pouco depois de assinar a Lei de 50, o Eusébio de Queiroz disse que alguns

acontecimentos de natureza gravíssima

"...produziram um terror que chamarei salutar porque deu lugar a que se desenvolvesse e

se fizesse sentir a opinião contrária ao tráfico.

Os mesmos fazendeiros que até ali apregoavam a necessidade do tráfico eram os primeiros

a contestar que era chegado o momento de dever ser reprimido."

Ou seja, mesmo impedidas de participar das tomadas de decisão, muito longe do controle

do processo político, alijadas de participar formalmente desse processo, as pessoas negras

influenciaram essas decisões.

E nas décadas seguintes, tudo isso seria determinante para a conquista da liberdade.

A Constituição do Império do Brasil de 1824, por essa Constituição aí, se você

nascesse no Brasil livre, ou se você tendo nascido no Brasil conquistasse a liberdade,

você podia ser considerado cidadão.

Isso significa que você tinha direitos civis garantidos.

Direitos civis são aqueles de proteção da propriedade, ter a sua casa como um espaço

inviolável, poder ir e vir.

Mas olha só, você só era investido dos direitos políticos se você tivesse dinheiro.

Para você votar, para você ser eleito, você precisava ter dinheiro.

Precisava comprovar renda.

E como eu falei mais cedo, não é que não tinha parlamentar negro nessa época.

Até tinha uns poucos.

Você tem uma presença de pardos, vou usar a terminologia da época, pardos e mulatos

no parlamento.

Um de renome era o Antônio Pereira Rebouças.

Era o que se chamava de um homem mestiço, filho de uma ex-escravizada e de um português.

Hoje ele é mais conhecido pelos filhos dele, por ser o pai dos irmãos Rebouças.

Mas ele era uma figura política influente do Império, e como ele tinha outros.

Você tem esses indivíduos inseridos no parlamento, mas eles são foses individuais, eles não

representam movimentos civis, coletivos, baseados na cor da pele.

Será necessário o surgimento de um movimento abolicionista reunindo pessoas de diversas

cores de pele?

Será necessário lutar dentro da escravidão, contra a escravidão, para que essas vozes

que você identifica, isoladas, importantes, muito importantes, mas isoladas no parlamento

da década de 1930, 40, 50, 60, se tornem vozes com impacto político mais profundo

no fim do Império?

Antes de começar a falar do movimento abolicionista, é importante entender o que estava acontecendo

no mundo naquele momento, depois que o Brasil finalmente acabou com o tráfico de escravizados.

Só quatro lugares nas Américas ainda não tinham abolido a escravidão.

Os Estados Unidos e o Brasil, que eram independentes, e duas colônias da Espanha, Cuba e Porto Rico.

Em 1861, começou a Guerra Civil nos Estados Unidos.

E um dos principais motivos foi que, um ano antes, tinha sido eleito presidente um candidato

do norte do país, e que já tinha se mostrado favorável à abolição.

Era o Abraham Lincoln.

Daí os Estados do Sul, que eram escravocratas, começaram a declarar sua secessão, a sua

separação da União.

Eram os Estados confederados.

E a guerra começou porque eles queriam, de qualquer jeito, manter a escravidão.

Daí aqui no Brasil, em 63, o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros apresentou

para o Congresso uma proposta de Lei do Ventre Livre, que os filhos das mulheres escravizadas

nascessem livres a partir daquele momento.

Isso foi em 63.

Os parlamentares não deram a menor pelota para ele.

Lá nos Estados Unidos, o norte venceu a guerra e a escravidão acabou por lá, em 65.

Aí ficaram só Brasil, Cuba e Porto Rico ainda com escravidão.

E o Brasil como a única nação independente, né?

Vergonha mundial.

Nessa época, o imperador Dom Pedro II, que assumiu depois do golpe da maioridade, já

estava há mais de 20 anos no poder.

Daí, em 65, ele encomendou um estudo sobre medidas legislativas para a emancipação.

Dois anos depois, o imperador levou esse estudo para os ministros dele.

Um monte de deputados, senadores e tudo mais.

Era a proposta de uma Lei do Ventre Livre, mas com tempo de serviços prestados para

servir como indenização.

As meninas que nascessem ficariam livres quando completassem 16 anos e os meninos aos 21.

Os ministros disseram que não achavam conveniente a ideia e o projeto foi engavetado.

Daí estourou uma revolução em Cuba, em 68, contra o domínio espanhol.

Alguns senhores chegaram a libertar seus escravizados para lutar pela independência da ilha.

A Espanha ficou com medo de que o resto dos escravizados fosse recrutado pelos rebeldes.

E para acalmar os ânimos, aprovou uma lei de abolição gradual da escravidão.

Uma mistura de ventre livre com lei dos sexagenários.

Estavam livres os bebês e também os escravizados com mais de 60 anos, com pagamento de indenização

para os senhores.

E isso deixou o Brasil com as calças na mão.

O único país das Américas que não estava nem se preparando para a abolição.

E é nesse contexto que toma força o movimento abolicionista por aqui.

Nos anos 50, tem já três associações abolicionistas que aparecem, mas é só isso.

São membros da elite política, da elite social, que estão preocupados em abolir a

escravidão paulatinamente.

Esta é a Ângela Alonso, historiadora e professora.

Mas isso também não vai adiante porque não tem apoio popular.

Então eu começo a contar essa história em 1868 porque eu acho que é aí que realmente

começa uma articulação que dá origem ao que se torna o movimento abolicionista, ao

mesmo tempo em que há um empenho de uma ala da elite política dentro das instituições

políticas para fazer o processo andar.

E uma figura central nesse processo foi o engenheiro André Rebouças, o filho mais

famoso do Antônio Pereira Rebouças.

É uma figura muito interessante porque ele pode dar um nó na cabeça das pessoas.

O Rebouças não é simples.

Ele é negro, ele é de uma família obviamente negra, mas o pai dele prestou serviços ao

império durante o processo de consolidação do segundo reinado.

E o André Rebouças, o filho?

Ele tem um projeto de abolir a escravidão que é vinculado com um projeto de modernização

do país, porque ele é um engenheiro.

Mas na casa dele tem escravos.

Sim, na casa do André Rebouças, o intelectual negro, um dos principais nomes do nosso abolicionismo,

a casa dele tinha escravizados.

Logo que ele decide entrar na campanha, ele liberta outros abolicionistas importantes,

como Joaquim Serra, o Rui Barbosa, só libertam seus escravos bem mais pra frente na campanha.

Então também não era visto como uma contradição você defender ideias abolicionistas e você

ainda possuir escravos.

Então esses fenômenos são todos sempre muito mais complexos do que o bem contra o

mal também.

E a gente já falou sobre isso.

O Brasil era uma sociedade escravista.

Tudo girava em torno disso.

Pra ter dinheiro, pra ter poder, pra ter liberdade política, as pessoas tinham escravizados.

O que não quer dizer que precisava ser assim pra sempre.

O Rebouças tomou consciência disso.

O que vai fazer a cabeça do Rebouças girar é o momento em que ele entende que ele é

negro.

E isso só vai acontecer mais tarde, já nos anos 70, quando ele vai pros Estados Unidos.

Ele não pode se hospedar em nenhum hotel de elite, ele não pode assistir a ópera.

E daí ele percebe que lá não adianta ele ser um homem culto, ter boas conexões sociais,

etc.

Que ele inclusive tem, mas que ele vai ser tratado sempre a partir da cor da pele.

E aí é que ele realmente se transforma num abolicionista, não só de mente, mas de coração.

E aí é o momento em que ele vai fazer alianças com José do Patrocínio, com Vicente de Souza,

dois grandes abolicionistas, dois grandes abolicionistas negros,

o José do Patrocínio e o Vicente de Souza.

A esposa do Vicente também foi bem importante, a Cacilda Francione de Souza.

Ela é considerada a primeira mulher a participar abertamente das conferências abolicionistas,

que eram eventos com participação popular que aconteciam por todo o país.

Um outro abolicionista negro de destaque era o Ferreira de Menezes.

E é óbvio que também tinham pessoas brancas entre os abolicionistas.

Um nome bem importante, por exemplo, é o do Joaquim Nabuco.

Mas espera que tem um outro protagonista desse movimento que ainda não apareceu aqui.

O Luiz Gama é negro como reboso, mas eles são absolutamente diferentes.

Porque o Luiz Gama é o único abolicionista que a gente tem, assim, uma narrativa formal

que é alguém que tenha passado por um processo de escravização.

Ele não tem acesso à corte do imperador.

Então, ele é um homem que vai se vincular à oposição política do império.

Não existe ninguém com uma história tão triste.


8. Democracia - Part 1 8. Demokratie - Teil 1 8. Democracy - Part 1 8. Democracia - Parte 1 8. Démocratie - Partie 1

Eu sou o Tiago Rogero, este é o podcast do Projeto Querino, produzido pela Rádio Novelo.

E aqui já é a casa principal, né?

Esse complo que você tá vendo aqui, ó, era o famoso quartinho escuro da casa.

Aí é onde o pessoal tem a capela, os barões iam participar da missa e os escravos ficavam

aqui pra participar da missa.

Essa fazenda foi fundada em 1784.

Fica perto de uma cidade do interior de Minas Gerais chamada Cruzília.

Esse que tava conversando comigo é o atual gerente da fazenda, o Aldivan da Silva.

No passado, a fazenda pertencia aos Junqueira, uma família tradicional mineira.

Gente muito rica.

O nome da fazenda é Bela Cruz.

E da família antiga, o que era esse zambi?

Por exemplo, o quarto principal ficava pra lá, pra cá?

Conta a história, eu não sei te falar exato, mas conta a história que o homem foi assassinado

nesse quarto que tá aqui.

Que tem, eu não sei se você já leu lá, que quando fizeram a revolta de Carrancas,

e aí vieram os escravos florescidos, matou todo mundo que tá aqui na casa e, inclusive,

o filho, que é o, acho que chama o José Francisco Junqueira, que ele se trancou no

quarto e um dos escravos cortou a porta a golpe de machado e o cavaleiro catou a garrocha

e matou ele na garrocha, né?

A tiro de garrocha.

Um dia, em 1833, na hora em que o senhor chegou à roça pra monitorar o trabalho, ele foi

assassinado.

Morto pelos escravizados dele.

Esse homem era um juiz de paz e também era filho de um deputado federal.

O deputado é que era o dono das fazendas.

Ele só não tava lá na hora da revolta porque tava na corte no Rio de Janeiro.

O nome do deputado era Gabriel Francisco Junqueira.

Ao todo, os escravizados mataram nove pessoas da família dele, entre elas três crianças.

O caso ficou conhecido como a Revolta de Carrancas, que era o nome dessa região de Minas Gerais

na época.

Bom, eu sou Rogério Padana Cano, hoje eu sou o proprietário aqui da Fazenda Bela Cruz.

A família do Rogério não tem nada a ver com a revolta.

Eles compraram a fazenda em meados dos anos 2000 de um descendente dos Junqueira.

E foi muito interessante porque meu pai gosta de fuçar essa parte histórica, daí ele

achou um inquérito policial da época da Revolta de Carrancas.

É um inquérito policial bem grande e bem detalhista de como eles encontraram a região.

E daí a gente começou a ficar muito curioso pela história da fazenda por conta disso,

porque foi uma revolta bem marcante e violenta.

E ela foi violenta porque tinha uma razão aqui, e daí isso acaba explicando muito como

as coisas eram aqui.

Os relatos históricos demonstram que era uma situação muito difícil pros escravos e

tudo mais.

A revolta só foi abafada quando os escravizados seguiram pra uma terceira fazenda.

Foram mortos o líder do movimento, o nome dele era Ventura Mina, e outros quatro escravizados.

Isso tudo foi num 13 de maio.

13 de maio.

Outros 31 escravizados que sobreviveram foram acusados de participar do levante.

16 deles foram executados depois de terem sido condenados à pena de morte.

E isso era algo muito fora da curva pra casos assim.

Essa quantidade de gente condenada à pena capital.

É que o período da escravidão tinha essa dicotomia muito louca.

Por mais que pessoas escravizadas não fossem tratadas nem como seres humanos, elas eram

um bem valioso demais pro senhor.

A ideia que eles tinham do escravo rebelde era que o rebelde de um dia é preso, punido,

e no outro dia ele é colocado pra cortar cana.

E este é o João José Reis.

Eu sou professor da Universidade Federal da Bahia e sou historiador, escritor.

E ele tá lembrando que o senhor de escravos preferia mil vezes castigar o escravizado

do que simplesmente matar.

Embora às vezes o castigo era tanto que acabava levando à morte também.

Era uma propriedade muito preciosa pra estar sendo presa, cumprir pena, ser castigada e

muito menos executada.

E no caso da Revolta de Carrancas, como você ouviu, não foi um escravizado que foi executado.

Foram 16.

Fora os cinco que já tinham morrido no dia do confronto.

O historiador Marcos Ferreira de Andrade, estudioso da Revolta de Carrancas, já escreveu

que a explicação mais razoável pra essa quantidade de condenações à morte é o

fato de terem assassinado vários membros de uma família senhorial ligada à elite política

liberal moderada do Império, que dava as cartas do jogo político naquele contexto.

O massacre que se abateu sobre os Junqueiras trouxe pânico às elites regionais, ao parlamento

e à regência.

Aquele era o período das regências, né?

A década de 1830.

O Dom Pedro I tinha abdicado do trono em 31, o filho dele ainda era só uma criança e

o governo estava sendo revezado nas mãos da classe política.

Era um momento de tensão em todo o país, né?

De novo aqui, o João José Reis.

Um período em que pipocaram revoltas regionais em diversos pontos do país.

Agora é muito importante que esse é um período que há um acúmulo, digamos assim, de uma

onda muito grande de importação de escravizados africanos.

E a gente falou sobre isso nos dois primeiros episódios.

Na euforia da independência, na gana, na ambição desenfreada, os escravistas trouxeram

muito mais gente escravizada para o Brasil.

Quando começaram os tratados com a Inglaterra para proibir o tráfico, os senhores compraram

ainda mais para poder fortalecer o estoque.

Foi um volume tão grande que pressiona as tensões entre os escravos, tanto que nesse

período que vai entre 1826 e 1831, ocorrem 16 revoltas ou conspirações.

E isso só na Bahia.

Teve muita insurreição na Bahia nesse período.

A maior e mais famosa delas foi em 1835.

A Revolta dos Malês foi uma revolta de africanos, tanto africanos escravizados como africanos

libertos.

A Revolta de 1835 foi a 31ª, alguma coisa assim, das revoltas.

Então havia uma tradição rebelde importante.

O João José Reis escreveu um livro incrível sobre a revolta.

Rebelião Escrava no Brasil.

A história do levante dos malês em 1835.

Ela foi organizada por negros malês.

Malês eram os africanos de origem urubá, portanto nagois, e que vinham da região da

Costa da Mina.

A Costa da Mina é um litoral que hoje em dia pertence ao Toho, República do Benin

e Nigéria.

Malê era a forma como eram chamados os africanos que eram muçulmanos.

E a Revolta dos Malês ganhou esse nome porque foi organizada por muçulmanos.

Tudo começou na madrugada de um 25 de janeiro.

Porque houve uma denúncia e a polícia saiu batendo na porta daqueles lugares apontados

como sendo locais de reunião de africanos.

E a polícia chega realmente num local onde havia um grande grupo reunido.

E quando a polícia entra nesse local, os africanos que lá estavam reunidos saem armados

e tem uma primeira pequena batalha entre cerca de 60 rebeldes e a polícia.

Então a partir daí, há uma dispersão desses rebeldes.

Eles se dispersaram pela cidade, por Salvador.

Esses homens saem pela cidade gritando que estava na hora de se levantar e outros africanos

foram aderindo.

Eles percorrem uma área muito grande da cidade de Salvador e o que se ouviu ser gritado

nas ruas da cidade foi morte aos brancos, viva Nagô.

Só que no meio do caminho ficava o quartel da cavalaria.

Os soldados montados atacaram esses rebeldes que estavam saindo da cidade.

Quando houve uma última batalha ali, que foi a mais sangrenta, morreram cerca de 70,

talvez mais, africanos.

E a revolta basicamente terminou aí.

Centenas de pessoas foram presas e 15 foram condenadas à morte.

Mas houve a comutação da maioria dessas penas.

Foi transformada em outras penas como chibatada ou até absorvição no segundo júri que

houve e quatro pessoas foram executadas, foram fuziladas.

Deveriam ter sido enforcadas, mas não se encontrou ninguém que pudesse servir, que

aceitasse servir como carrasco.

Outras dezenas de pessoas foram expulsas do Brasil.

Mas só pessoas que já eram livres, nenhum escravizado.

Porque o escravo era uma mercadoria, então não ia simplesmente expulsar, porque ia prejudicar

os senhores, mas as pessoas que foram expulsas eram ex-escravos, libertos africanos e foram

expulsas de volta para a África.

E essas duas revoltas, a de Carrancas e a dos Malês, acabaram tendo um impacto enorme

na legislação do período.

Houve uma consequência muito grande em leis locais, sobretudo na corte, mas também em

todas as províncias de modo geral, que enrijeceram o controle não apenas dos escravizados, mas

também dos libertos africanos.

Reforçaram o controle e a repressão à população negra de modo geral.

E obviamente não eram as pessoas negras que faziam essas leis.

Tinha um ou outro caso de algum político afrodescendente, que à época podia ser lido

como mulato, como pardo, mas a classe política era majoritariamente branca, rica e comprometida

com a escravidão.

Boa parte dos deputados e senadores eram senhores de escravos.

Dom Pedro tinha caído, muita gente tentou radicalizar o momento, indo para o confronto

agônico, inclusive os escravizados.

Este é o Tâmis Pahom, historiador e professor, que a gente ouviu no segundo episódio.

Essa polarização popular empurra os conservadores para um eixo comum.

Ela apura o senso de coesão, solidariedade e autopreservação entre os donos do dinheiro

e do patrimônio das riquezas privadas.

Você tem aquele momento de mobilização no Brasil, mas a coligação das forças joga

a favor da reação e não da realização dos anseios das classes subalternas e populares.

Esse pessoal apostou no aumento da escravidão e reabriu o tráfico negreiro em larga escala,

fez tudo isso ao mesmo tempo.

E aí a gente chega naquele momento do total desrespeito à lei de 1831, quando o tráfico

de escravizados estava proibido, mas continuou com força total num grande acordo nacional.

São mais 19 anos de tráfico ilegal, de um dos maiores casos, se não o maior caso,

de corrupção sistêmica da história do Brasil.

Até que uma nova lei, em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz, finalmente pôs fim ao tráfico,

quase 20 anos depois da Lei de 1831.

E um alinhamento muito especial de forças para que essa lei passasse.

E por trás disso estava de novo a Inglaterra, o principal império do mundo naquele momento,

que nas décadas anteriores já tinha lucrado muito com a escravidão e com o tráfico,

mas que continuava com objetivos econômicos, atuando pelo fim do comércio negreiro.

A Inglaterra já estava participando da negociação de uma série de tratados que acabaram com

o tráfico em vários dos nossos países vizinhos, Chile, Venezuela, Uruguai, México.

Isso foi deixando o Brasil cada vez mais isolado no cenário internacional.

Daí em 1945, o parlamento britânico subiu o tom e aprovou uma lei, e a gente aprendeu

que a maior escravidão que tinha lá na escola é a Bill Aberdeen, que considerou

o tráfico marítimo de escravizados pirataria, e deu autorização para a Marinha Britânica

apreender esses navios.

Ela patrulhou as águas territoriais brasileiras, ela desembarcou, Thiago, marinheiro em terra

brasileira, sem permissão do governo brasileiro.

Ela abriu o porto do Rio de Janeiro, deixou os navios de guerra alinhados, deixando passar

só o navio que era obviamente destinado à Europa e parando todos os outros.

Em 1849 e 1850, a Grã-Bretanha já tinha tomado ou destruído pelo menos dez navios

brasileiros, todos em águas territoriais brasileiras e alguns até ancorados nos portos.

Aí o Brasil declarou guerra.

Não a Grã-Bretanha, porque não é bobo ao tráfico.

Em fevereiro de 1850, os políticos brasileiros concluíram que a única maneira de contornar

a situação e de evitar uma guerra era acabando de vez com o tráfico, cortando na própria

carne.

Quem assinou o parecer foi o ministro da Justiça, o Eusebio de Queiroz.

Por isso que a lei tem o nome dele.

Sem o perigo permanente de uma guerra contra a Grã-Bretanha, o maior poder marítimo e

militar da época, as elites do Brasil não teriam largado o osso, literalmente os ossos,

o sangue, os músculos daquelas pessoas livres trazidas como escravizadas ilegalmente para

o país.

Não teria largado.

Então se você tirar a Grã-Bretanha dessa equação, esquece.

Não tem fim do tráfico no grego.

Mas uma coisa que a gente não pode esquecer é o impacto que todas aquelas revoltas de

escravizados já estavam tendo sobre a classe política, sobre a população.

Porque os africanos, depois da Revolta de 35, como se não já bastassem as outras revoltas,

começaram a ser vistos e definidos como bárbaros, que em qualquer momento podia se levantar,

matar suas miras e assim por diante.

E quando o João José Reis fala nessas outras revoltas, a gente pode pensar não só nas

da Bahia ou na de Carrancas, em Minas, mas também nas outras tantas que estavam acontecendo

em outras partes do Brasil.

Em 38, por exemplo, na região de Vassouras, no Rio, estourou a revolta liderada pelo Manuel

Congo.

Centenas de escravizados fugiram de duas fazendas e se separaram em uma pequena região, que

se chamava de Mato Grosso.

O governo de João José Reis, que era o primeiro presidente da República,

foi exilado em 1932.

O governo de João José Reis, que era o primeiro presidente da República,

foi exilado em 1932.

A polícia descobriu um plano gigantesco de insurreição que ficou conhecido como

a Conspiração de 48.

A ideia era matar todos os senhores e tomar o poder.

E isso tudo a menos de 150 quilômetros da corte.

Por isso que, pouco depois de assinar a Lei de 50, o Eusébio de Queiroz disse que alguns

acontecimentos de natureza gravíssima

"...produziram um terror que chamarei salutar porque deu lugar a que se desenvolvesse e

se fizesse sentir a opinião contrária ao tráfico.

Os mesmos fazendeiros que até ali apregoavam a necessidade do tráfico eram os primeiros

a contestar que era chegado o momento de dever ser reprimido."

Ou seja, mesmo impedidas de participar das tomadas de decisão, muito longe do controle

do processo político, alijadas de participar formalmente desse processo, as pessoas negras

influenciaram essas decisões.

E nas décadas seguintes, tudo isso seria determinante para a conquista da liberdade.

A Constituição do Império do Brasil de 1824, por essa Constituição aí, se você

nascesse no Brasil livre, ou se você tendo nascido no Brasil conquistasse a liberdade,

você podia ser considerado cidadão.

Isso significa que você tinha direitos civis garantidos.

Direitos civis são aqueles de proteção da propriedade, ter a sua casa como um espaço

inviolável, poder ir e vir.

Mas olha só, você só era investido dos direitos políticos se você tivesse dinheiro.

Para você votar, para você ser eleito, você precisava ter dinheiro.

Precisava comprovar renda.

E como eu falei mais cedo, não é que não tinha parlamentar negro nessa época.

Até tinha uns poucos.

Você tem uma presença de pardos, vou usar a terminologia da época, pardos e mulatos

no parlamento.

Um de renome era o Antônio Pereira Rebouças.

Era o que se chamava de um homem mestiço, filho de uma ex-escravizada e de um português.

Hoje ele é mais conhecido pelos filhos dele, por ser o pai dos irmãos Rebouças.

Mas ele era uma figura política influente do Império, e como ele tinha outros.

Você tem esses indivíduos inseridos no parlamento, mas eles são foses individuais, eles não

representam movimentos civis, coletivos, baseados na cor da pele.

Será necessário o surgimento de um movimento abolicionista reunindo pessoas de diversas

cores de pele?

Será necessário lutar dentro da escravidão, contra a escravidão, para que essas vozes

que você identifica, isoladas, importantes, muito importantes, mas isoladas no parlamento

da década de 1930, 40, 50, 60, se tornem vozes com impacto político mais profundo

no fim do Império?

Antes de começar a falar do movimento abolicionista, é importante entender o que estava acontecendo

no mundo naquele momento, depois que o Brasil finalmente acabou com o tráfico de escravizados.

Só quatro lugares nas Américas ainda não tinham abolido a escravidão.

Os Estados Unidos e o Brasil, que eram independentes, e duas colônias da Espanha, Cuba e Porto Rico.

Em 1861, começou a Guerra Civil nos Estados Unidos.

E um dos principais motivos foi que, um ano antes, tinha sido eleito presidente um candidato

do norte do país, e que já tinha se mostrado favorável à abolição.

Era o Abraham Lincoln.

Daí os Estados do Sul, que eram escravocratas, começaram a declarar sua secessão, a sua

separação da União.

Eram os Estados confederados.

E a guerra começou porque eles queriam, de qualquer jeito, manter a escravidão.

Daí aqui no Brasil, em 63, o presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros apresentou

para o Congresso uma proposta de Lei do Ventre Livre, que os filhos das mulheres escravizadas

nascessem livres a partir daquele momento.

Isso foi em 63.

Os parlamentares não deram a menor pelota para ele.

Lá nos Estados Unidos, o norte venceu a guerra e a escravidão acabou por lá, em 65.

Aí ficaram só Brasil, Cuba e Porto Rico ainda com escravidão.

E o Brasil como a única nação independente, né?

Vergonha mundial.

Nessa época, o imperador Dom Pedro II, que assumiu depois do golpe da maioridade, já

estava há mais de 20 anos no poder.

Daí, em 65, ele encomendou um estudo sobre medidas legislativas para a emancipação.

Dois anos depois, o imperador levou esse estudo para os ministros dele.

Um monte de deputados, senadores e tudo mais.

Era a proposta de uma Lei do Ventre Livre, mas com tempo de serviços prestados para

servir como indenização.

As meninas que nascessem ficariam livres quando completassem 16 anos e os meninos aos 21.

Os ministros disseram que não achavam conveniente a ideia e o projeto foi engavetado.

Daí estourou uma revolução em Cuba, em 68, contra o domínio espanhol.

Alguns senhores chegaram a libertar seus escravizados para lutar pela independência da ilha.

A Espanha ficou com medo de que o resto dos escravizados fosse recrutado pelos rebeldes.

E para acalmar os ânimos, aprovou uma lei de abolição gradual da escravidão.

Uma mistura de ventre livre com lei dos sexagenários.

Estavam livres os bebês e também os escravizados com mais de 60 anos, com pagamento de indenização

para os senhores.

E isso deixou o Brasil com as calças na mão.

O único país das Américas que não estava nem se preparando para a abolição.

E é nesse contexto que toma força o movimento abolicionista por aqui.

Nos anos 50, tem já três associações abolicionistas que aparecem, mas é só isso.

São membros da elite política, da elite social, que estão preocupados em abolir a

escravidão paulatinamente.

Esta é a Ângela Alonso, historiadora e professora.

Mas isso também não vai adiante porque não tem apoio popular.

Então eu começo a contar essa história em 1868 porque eu acho que é aí que realmente

começa uma articulação que dá origem ao que se torna o movimento abolicionista, ao

mesmo tempo em que há um empenho de uma ala da elite política dentro das instituições

políticas para fazer o processo andar.

E uma figura central nesse processo foi o engenheiro André Rebouças, o filho mais

famoso do Antônio Pereira Rebouças.

É uma figura muito interessante porque ele pode dar um nó na cabeça das pessoas.

O Rebouças não é simples.

Ele é negro, ele é de uma família obviamente negra, mas o pai dele prestou serviços ao

império durante o processo de consolidação do segundo reinado.

E o André Rebouças, o filho?

Ele tem um projeto de abolir a escravidão que é vinculado com um projeto de modernização

do país, porque ele é um engenheiro.

Mas na casa dele tem escravos.

Sim, na casa do André Rebouças, o intelectual negro, um dos principais nomes do nosso abolicionismo,

a casa dele tinha escravizados.

Logo que ele decide entrar na campanha, ele liberta outros abolicionistas importantes,

como Joaquim Serra, o Rui Barbosa, só libertam seus escravos bem mais pra frente na campanha.

Então também não era visto como uma contradição você defender ideias abolicionistas e você

ainda possuir escravos.

Então esses fenômenos são todos sempre muito mais complexos do que o bem contra o

mal também.

E a gente já falou sobre isso.

O Brasil era uma sociedade escravista.

Tudo girava em torno disso.

Pra ter dinheiro, pra ter poder, pra ter liberdade política, as pessoas tinham escravizados.

O que não quer dizer que precisava ser assim pra sempre.

O Rebouças tomou consciência disso.

O que vai fazer a cabeça do Rebouças girar é o momento em que ele entende que ele é

negro.

E isso só vai acontecer mais tarde, já nos anos 70, quando ele vai pros Estados Unidos.

Ele não pode se hospedar em nenhum hotel de elite, ele não pode assistir a ópera.

E daí ele percebe que lá não adianta ele ser um homem culto, ter boas conexões sociais,

etc.

Que ele inclusive tem, mas que ele vai ser tratado sempre a partir da cor da pele.

E aí é que ele realmente se transforma num abolicionista, não só de mente, mas de coração.

E aí é o momento em que ele vai fazer alianças com José do Patrocínio, com Vicente de Souza,

dois grandes abolicionistas, dois grandes abolicionistas negros,

o José do Patrocínio e o Vicente de Souza.

A esposa do Vicente também foi bem importante, a Cacilda Francione de Souza.

Ela é considerada a primeira mulher a participar abertamente das conferências abolicionistas,

que eram eventos com participação popular que aconteciam por todo o país.

Um outro abolicionista negro de destaque era o Ferreira de Menezes.

E é óbvio que também tinham pessoas brancas entre os abolicionistas.

Um nome bem importante, por exemplo, é o do Joaquim Nabuco.

Mas espera que tem um outro protagonista desse movimento que ainda não apareceu aqui.

O Luiz Gama é negro como reboso, mas eles são absolutamente diferentes.

Porque o Luiz Gama é o único abolicionista que a gente tem, assim, uma narrativa formal

que é alguém que tenha passado por um processo de escravização.

Ele não tem acesso à corte do imperador.

Então, ele é um homem que vai se vincular à oposição política do império.

Não existe ninguém com uma história tão triste.