Procissão (Gilberto Gil), O ARRANJO #31 (English subtitles)
Era um garoto que, com muitos no sertão, amava Luiz Gonzaga
Beto tinha 10 anos quando pediu de presente uma sanfona:
desde os 3 anos de idade ela falava que queria ser musgueiro: músico, na sua linguagem infantil
A mãe comprou e o matriculou na Academia de Acordeom,
e passados mais de 40 anos ela ainda se lembrava do dia da formatura do filho
Dentre todos os formandos, só seu filho Beto fez um número solo
"Você foi o único que fez solo, e fez solo da música de Ary Barroso.
Os outros todos tocaram em conjunto, foram muitos em conjunto, mas ele fez o solo sozinho,
ele sozinho no acordeom, cantando Folhas Mortas de Ary Barroso, eu não me esqueço"
O menino Beto cresceu e anos depois o poeta Torquato Neto disse sobre ele:
"Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas"
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
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Procissão é uma canção de Gilberto Gil, composta quando ele morava em Salvador,
mas o cenário da música é Ituaçu, onde ele passou a infância
Ituaçu é uma pequena cidade na caatinga, no interior da Bahia, perto da Chapada Diamantina,
que hoje tem por volta de 20 mil habitantes
Quando Gil morou na cidade não chegava a mil o número de moradores,
e a cidade tinha apenas duas ruas
Ficaram registradas na sua cabeça as lembranças das festas, as juninas e as religiosas,
e as procissões que passavam em frente à casa do menino Beto, como era chamado pela família
"E eu me lembrava dos andores, das pessoas carregando os santos, e tal,
e quando eu fiz Procissão era exatamente as reminiscências daquelas procissões de Ituaçu"
É uma das canções que Gil mais regravou,
só nos anos 60 foram 3 versões: no seu primeiro compacto pela RCA Victor,
no seu primeiro LP, pela Phillips, e no seu segundo LP também,
aí já revista pelo filtro tropicalista, acompanhado do grupo Os Mutantes
É a versão de Procissão do primeiro disco do Gil,
Louvação, gravado em 1967 com arranjo de Dori Caymmi,
que eu vou analisar nesse vídeo
UM POUCO DE HISTÓRIA
José Gil, o bisavô de Gilberto Gil era um escravo alforriado,
que comprou a sua liberdade um pouco antes da abolição,
e abriu um armazém na cidade baixa de Salvador
Seu filho João foi da Guarda Nacional, e já era da classe média da cidade,
mesmo sendo filho de ex-escravo
João teve muitos filhos, e um deles, José Gil como o avô, se formou em medicina
O futuro doutor Gil Moreira ainda era estudante de
medicina quando conheceu e começou a namorar Claudina, que era professora
Se casaram e resolveram morar no interior
"Começar a vida em Salvador era mais difícil naquela época,
havia também muita demanda no interior da Bahia
por professores e médicos, e eles resolveram ir pra Ituaçu, foram pra Ituaçu"
Claudina logo engravidou, mas como a família ficou na capital, foi pra Salvador ter o filho,
e só por isso Gilberto Gil é soteropolitano
No ano seguinte, 1943, nasceu Gildina, e a família se formou com a ida também pra Ituaçu de Lídia,
tia de José Gil, que criou o sobrinho porque os pais dele morreram muito cedo
Lídia era professora em Salvador e se aposentou,
e foi pra Ituaçu cuidar de Beto e Dina, enquanto os pais trabalhavam
A tia avó virou a avó que os netos não conheceram
"Meu pai com os afazeres de médico, no consultório aí ao lado, minha mãe ensinando,
professora primária ali no grupo escolar, e minha vó tomando conta da casa
Tanto no ponto de vista de todos os afazeres do domésticos, a administração de tudo,
quanto também da educação,
da alfabetização dos dois netos, eu e minha irmã, Gildina, ela ficou com essa tarefa
Nós não fomos pra escola, ela ficou com a tarefa de nos alfabetizar e nos ensinar tudo
E aqui, nessa cozinha, que era o quartel general dela, aqui era a sala de aula matinal"
E a música sempre muito presente,
ou no rádio da casa, que sintonizava as rádios da capital, Rio de Janeiro,
ou nos auto-falantes da cidade, que tocavam Luiz Gonzaga, a primeira paixão de Gil
Na trilha sonora de Ituaçu tinha também os violeiros, que chegavam no dia da feira,
tinha o sanfoneiro Sinésio e a Lira Itauçuense, uma banda filarmônica que encantava o pequeno Gil
O pai de Gil era um dos dois únicos médicos da cidade,
e para os padrões de Ituaçu eram uma família da classe dominante
Moravam na rua de baixo, junto com o juiz de direito, o padre,
o outro médico, os comerciantes, a elite local
Na rua de cima , de terra batida, moravam os comerciários, os empregado domésticos,
enfim, a classe mais desfavorecida da população
O clima político era de muita rivalidade entre os dois maiores partidos da época,
a UDN e o PSD, e isso transbordava até para os médicos locais
Quem era simpatizante do PSD se tratava com o pai de Gil,
e quem era udenista se tratava com o Doutor Gouveia, que era da UDN
E isso era radical: se havia um paciente do PSD correndo risco de vida
e o pai do Gil não estivesse na cidade, por algum motivo, ele poderia morrer
Gil e a irmã passavam os 3 meses das férias de fim de ano em Salvador,
na casa da irmã de José Gil, Margarida,
e a viagem de 470 quilômetros entre Ituaçu e Salvador era uma epopeia
"Muitas vezes nós fomos pra Tanhaçu pegar o trem nos carros de boi
Juntava a família inteira, colchões, travesseiros,
os apetrechos todos, um carro de boi atrás com a bagagem toda,
nós saíamos cedinho, três horas da manhã, pra ir pra Tanhaçu
pra pegar o trem, e o trem ia pra Cachoeira"
Dali eles pegavam o Vapor de Cachoeira,
que ia pelo rio até desaguar na Baía de Todos os Santos, no porto de Salvador
Nas temporadas de férias na capital, Gil e a irmã tinham contato com a vida cosmopolita de Salvador,
e ainda passavam o carnaval na cidade, antes de voltar pro interior
Então Salvador já era uma cidade bastante conhecida
pelos irmãos quando se mudaram pra lá, em 1950, para fazer o ginásio
Não havia ginásio em Ituaçu, então eles se mudaram, com a avó Lídia,
pra mesma casa da Tia Margarida onde passavam as férias, no bairro de Santo Antônio
Até se mudar pra Salvador Gil não conhecia o peso da discriminação racial,
Ituaçu era uma cidade pequena e miscigenada, e a sua família era da elite local
Mas ao entrar no Colégio Marista, frequentado pela
classe alta de Salvador, Gil percebeu que era o único negro em toda a escola
E logo veio o choque maior: ele fez uma pergunta pro professor
que respondeu rispidamente: "cala a boca, seu negro boçal"
Gil conheceu o racismo aos 9 anos
Se na escola ele tinha contato com os filhos da elite de Salvador,
no bairro onde ele morava os contatos eram outros:
era um bairro da classe média baixa, dos negros, dos árabes, a elite dos imigrantes
O Santo Antônio era um bairro colonial,
onde ficavam as igrejas mais antigas, as fundações da cidade,
representava na época o que havia de mais importante na
acumulação cultural da classe média baiana
Gil afirmou que naquela época Santo Antônio era o bairro central da cidade,
a centralidade cultural de Salvador,
e lá nasceram os grandes blocos carnavalescos como o Filhos de Gandhi
Já com domínio do acordeom, Gil é convidado para tocar jingles na rádio e lá conheceu Jorge Santos,
dono de uma agência de publicidade e de um estúdio
É o primeiro contato do Gil com a música profissional, com estúdios de gravação
Assim como pra muitos da sua geração, como Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso,
tudo mudou com o aparecimento de João Gilberto e da Bossa Nova
Gil abandonou o acordeom, pediu um violão para os pais e comprou
um método de violão do grande violonista Garoto
Com o violão vieram as primeiras composições,
sambas muito influenciados pela batida e pelo jeito de cantar de João Gilberto,
baiano do interior, como ele
Gil compunha jingles também, era uma forma de ganhar uns cachês,
e o exercício de compor jingles, segundo ele,
foi importante para a sua carreira como compositor popular
Gil já estava fazendo o curso de administração na Universidade Federal da Bahia,
e passou num concurso para trabalhar na alfândega de Salvador, e conciliava estudos e emprego
Nessa época, começo dos anos 1960,
o publicitário Jorge Santos criou um programa de
televisão que ia ao ar aos sábados, o JS Comanda o espetáculo, na TV Itapoã
Era um programa de variedades, como um Silvio Santos ou um Fausto Silva,
ficava a tarde de sábado inteira no ar
Gil era sempre convidado pra cantar nesse programa de TV,
mostrava as suas músicas e começou a ficar conhecido em Salvador
Jorge Santos resolveu abrir uma gravadora, a JS Discos,
e convidou Gil pra gravar um compacto duplo de 78 rotações,
o primeiro disco dele, chamado Gilberto Gil - sua música, sua interpretação, em 1963
Nesse mesmo ano ele conhece um parceiro de vida fundamental: Caetano Veloso
Caetano conta que já o conhecia da televisão pelo programa de Jorge Santos, e sua mãe, Dona Canô,
costumava a chamá-lo quando Gil aparecia: "Caetano, venha ver aquele preto que você gosta!"
Ficaram imediatamente amigos, e através do Caetano Gil conheceu a irmã dele, Maria Bethânia,
que ainda estava no colégio, e depois Gal Costa, que era conhecida como Gracinha
Esse núcleo base, e mais Tom Zé, montam espetáculos coletivos no Teatro Vila Velha,
ainda amadores, mas já com ambições profissionais
No fim de 1964 Gil se forma em Administração de Empresas, pra orgulho dos pais
A empresa Gessy Lever o convida para um teste em São Paulo em janeiro de 65, e lá,
durante uma noitada no bar Juão Sebastião Bar,
conhece um estudante de arquitetura conhecido por Carioca
Gil sobe no palco e canta uma música sua, o Carioca também, e Gil fica impressionado
Quando volta pra Salvador, conta pro Caetano: conheci um cara fantástico,
todos chamam de carioca, mas o nome dele é Chico Buarque
Pouco tempo depois, Gil estava saindo do seu trabalho na alfândega, de terno e gravata,
quando vê um grupo de universitários fazendo uma vaquinha pra comprar cachaça
Um deles está usando óculos escuros, como se fosse um cego,
e está tocando violão, e Gil logo o reconhece:
era o Carioca, Chico Buarque, viajando com amigos da faculdade
Foi aprovado nos testes da Gessy Lever e se casou com a namorada
Belina pra se mudar pra São Paulo, no meio de 65
Antes de se mudar, Gil faz seu primeiro show solo,
em que ele lança uma música em que já se imagina fora da Bahia
A Gessy Lever tinha um projeto pro Gil: fazer dele o primeiro executivo negro da empresa,
e esse projeto incluía fazer longos estágios no exterior
Gil levava uma vida dupla: trabalhava durante o dia, e a noite era dedicada à música
Saía todas as noites para bares, reuniões em casas de amigos, Teatro de Arena,
sempre mostrando as suas músicas e conhecendo novos compositores
Caetano também se mudou para São Paulo na mesma época, acompanhando a irmã, Bethânia,
que participava do espetáculo Opinião, com direção de Augusto Boal
Outro espetáculo de Boal estava em cartaz também, o Arena conta Zumbi,
com músicas de Edu Lobo, um grande sucesso de público
Boal conhece todo o núcleo baiano, incluindo ainda Gal e Tom Zé,
e resolve fazer um espetáculo como o do Zumbi,
mas falando dos problemas do nordeste brasileiro, e chama esse espetáculo de Arena Canta Bahia
A direção musical foi assinada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jards Macalé,
, mas a direção geral de Augusto Boal naturalmente se impunha como a última voz
Boal, por exemplo, recusou as músicas de Dorival Caymmi sugeridas pelo grupo baiano,
porque fugiam do tema proposto por ele:
contar uma história de retirantes que fugiam da seca do nordeste
Não lhe interessava uma coleção das mais belas canções baianas,
mas sim fazer um teatro que condenasse a ditadura
Uma das músicas que se encaixava politicamente com a peça já tinha
sido trazida pronta por Gil da Bahia: Procissão
1. MELODIA Segundo o Gil, Procissão é uma canção bem ao
gosto do pensamento de esquerda da década de 60, nas palavras dele é
"solidária a uma interpretação marxista da religião, vista como o ópio do povo
e fator de alienação da realidade, segundo o materialismo dialético"
Em Procissão aparece muito mais o Gil fã do Luiz Gonzaga do que o fã do João Gilberto
Mesmo na letra, em que ele usa um linguajar mais popular,
como muitas vezes Luiz Gonzaga fez nas suas músicas
Na primeira versão gravada pelo Gil, em um compacto logo depois da peça Arena Canta Bahia,
Gil chega a errar os plurais nos versos, como se fosse mesmo um sertanejo falando
E também musicalmente é uma canção mais próxima da música de Gonzaga, é pré-bossa nova,
em a riqueza harmônica de outras músicas de Gil do período, como "Eu Vim da Bahia" e "Beira Mar"
A música começa com uma citação de uma oração a São José pedindo chuva,
que pode ter sido ouvida por Gil nas procissões em Ituaçu
A melodia desse trecho é uma melodia modal, porque é construída em cima do modo grego mixolídio
Nesse modo grego, o sétimo grau é menor, a nota que caracteriza o mixolídio está aqui
aqui estou em vossos pés
O modo mixolídio é conhecido aqui no Brasil com um dos modos nordestinos,
uma das escalas mais utilizadas em músicas da região nordeste
2. ORQUESTRAÇÃO O arranjador Dori Caymmi produziu o disco Aquele Som dos Gatos, gravado em 1966,
com o grupo Os Gatos, um projeto do grande produtor Armando Pittigliani
O arranjador do disco era Eumir Deodato,
e o Dori ficou muito impressionado com a sonoridade que Eumir usava,
misturando o sax de Paulo Moura e as flautas do Copinha e do Meirelles
Na orquestração de Procissão, Dori Caymmi usou exatamente esse naipe de sopros, flauta e sax,
mas aqui são duas flautas, um sax alto e um sax tenor, além do violão do Gil,
bateria e percussão, uma sonoridade muito limpa
3. A FORMA DO ARRANJO A forma de Procissão é ABB, com cada trecho com 18 compassos
Não tem refrão, são 3 letras diferentes na sequência
A forma desse arranjo é assim: começa com a oração a São josé, depois uma introdução,
e segue a música inteira, ABB
Depois repete a parte A, e tem uma pequena coda,
repetindo duas vezes os últimos 4 compassos da parte A
O começo da música, com a melodia de uma procissão, é cantado a cappella,
ou seja, sem nenhum acompanhamento instrumental,
com um coro cantando a mesma melodia em duas oitavas,
homens em uma oitava e mulheres oitava acima
Aqui a nota característica do modo mixolídio,
que dá esse tom modal pra essa introdução
Uma frase de flautas começando em intervalos de quartas
E depois em intervalos de terças,
e os saxes também em terças
A sonoridade é simples, com o violão maravilhoso do Gil e a percussão bem leve
As flautas citam a oração da introdução, com acompanhamento dos saxes
Respostas em terças das flautas
Acordes das flautas e dos saxes em posição cerrada,
todas as notas muito próximas umas das outras
A frase em terças da introdução, com as flautas fazendo a terça maior
enquanto o violão fez a terça menor
Base harmônica com flautas e saxes
Agora o mesmo acompanhamento nas flautas e saxes do fim da introdução
Na repetição do A o Gil faz outra progressão harmônica,
outra sequência de acordes
De novo o acompanhamento dos sopros em posição fechada,
as notas todas muito próximas
E as flautas citam a melodia da oração pra terminar a música
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A seguir cenas do próximo capítulo