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Tecnocracia, Tecnocracia #55: Como o bolsonarismo usou a tecnologia para prender nossos pais em uma realidade paralela (1)

Tecnocracia #55: Como o bolsonarismo usou a tecnologia para prender nossos pais em uma realidade paralela (1)

É uma história que todo mundo conhece, viveu ou está vivendo. Enfermeira e epidemiologista, Maria Cristina Willemann vinha alertando desde fevereiro de 2020 sobre os potenciais efeitos nocivos de um vírus detectado na China e como se proteger dele. Os alertas de Maria Cristina não estavam restritos a seus familiares, amigos e vizinhos. A epidemiologista deu algumas entrevistas tanto para a mídia local em Santa Catarina, onde vive, como para a nacional. Em agosto de 2020, por exemplo, lá estava Maria Cristina falando sobre a pandemia de Covid-19 para o Jornal Hoje, da TV Globo.

Para o jornal, ela deu direcionamentos que não soam como enorme surpresa para qualquer pessoa acompanhando o desenrolar da pandemia: “É importante que a população entenda que nós ainda estamos em franca expansão da pandemia em nosso Estado e é preciso tomar cuidado. Não frequentem locais que não estejam adequados. Não frequentem locais onde possa haver qualquer aglomeração de pessoas.” A entrevista ao Jornal Hoje é um marco para ela, não só pela relevância nacional, mas porque no dia seguinte o pai de Maria Cristina foi internado em estado grave com a doença. Dias depois, ele morreu.

Segundo Maria Cristina, o pai contraiu a Covid-19 por não seguir os próprios conselhos que a filha dava a milhões de brasileiros na TV e nos jornais. Abre aspas para a Maria Cristina na reportagem da BBC Brasil que conta toda a história: “É muito frustrante saber que estou desde o começo da pandemia trabalhando para evitar o adoecimento das pessoas, mas não consegui convencer o meu próprio pai a seguir as medidas adequadas. É um misto de frustração e raiva.”

É uma sensação familiar para você, bonitinho, bonitinha?

Nas primeiras semanas da pandemia, o pai de Maria Cristina, preocupado com as notícias que vinham do mundo inteiro, se isolou com a mulher em casa. Conforme as semanas passavam, porém, o isolamento foi perdendo o sentido para ele. “Aos poucos, ele foi voltando à rotina normal. Como ele saía de casa várias vezes e não pegava o coronavírus, pode ter pensado que não pegaria em nenhum momento. Então, cada vez mais foi voltando às atividades de antes”, disse ela.

Uma parte relevante dessa mudança de postura do pai dela está relacionada às informações consumidas sobre a pandemia. Ainda que tivesse acesso livre à filha, mestra e pesquisadora em epidemiologia, o pai preferia se informar de outra maneira: pelos grupos de WhatsApp. O pai de Maria Cristina repetia todas as teorias que qualquer pessoa que acompanhe o papel do Governo Federal e do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia conhece.

“Ele recebia as informações falsas, como sobre a cloroquina, pelo WhatsApp, que era o meio de comunicação que ele mais usava. Por mais que dissessem na televisão que não tinha evidência científica sobre a cloroquina, ele preferia acreditar no WhatsApp. Por mais que eu falasse tudo pelos critérios científicos, ele preferia acreditar nas conversas dos amigos, nas mensagens de WhatsApp… Ele pensava: se para tudo tem um tratamento, por que para a Covid não vai ter?”

O pai adorava dominó e jogava em um boteco com os amigos. “O bar era um local fechado, com algumas janelas abertas. Havia uma placa que dizia que o uso da máscara era obrigatório, mas não era isso que acontecia na prática, porque as pessoas bebiam e jogavam ao mesmo tempo. O meu pai, com certeza, jogava sem máscara. Tenho plena convicção de que ele contraiu o coronavírus no bar. Soube que muitos frequentadores do local também adoeceram no mesmo período, porque [entre o fim de julho e o começo de agosto] foram semanas de altíssima transmissão do vírus em Lages”, a cidade catarinense onde ele morava.

Essa reportagem da BBC Brasil, (que) foi apurada e escrita pelo jornalista Vinícius Lemos, foi publicada em janeiro. A gente não sabia em janeiro, mas os piores dias da pandemia ainda estavam diante de nós: em março, a gente chegou ao assustador número de 3 mil mortos diários na média móvel. A reportagem tem algumas fotos muito bonitas da vida que a gente tem com nossos pais e mães, da forma como eles estão lá (na maioria das vezes) nos acompanhando em momentos cruciais — lá está pai e filha na formatura dela, ou então ela, ainda bebê rechonchudo e com um chapeuzinho branco, no colo do pai orgulhoso. E eu vou te aconselhar a clicar na reportagem da BBC para lê-la inteira e ver as fotos. É sempre bom lembrar: isso que você tá ouvindo tem o roteiro na íntegra no Manual do Usuário, com os links. A história é triste por essa muralha erguida entre pai e filha que impedia uma comunicação efetiva feita por alguém que domina sua área, sabe o que fala e, sem a menor sombra de dúvida, quer o melhor para seu pai. No sentido contrário, eu acredito piamente que o pai da Maria Cristina a amava — e eu nunca troquei uma palavra com ela nem com ele, cujo nome eu não vou declarar em sinal de respeito.

O ponto aqui não é o amor. Quer dizer, é, mas como consequência, comparação, expectativa corrompida. A história da Maria Cristina é dolorosamente familiar para muita gente. O caso dela é mais extremo, já que ela é especialista e o pai morreu ao negligenciar a doença que ela instruiu milhões de pessoas a evitarem. Mas, em menor grau, essa relação complicada se replicou em milhares de casas pelo Brasil desde 24 de março de 2020, quando o presidente Jair Bolsonaro foi à TV e chamou o então ainda bastante desconhecido COVID-19 de “gripezinha”.

Literalmente, o prato do brasileiro está vazio, mas, metaforicamente, tem muita coisa para digerir — a fome volta a ser um problema endêmico, junto à pior pandemia do século, com quase 600 mil mortos, inflação mais alta desde 2014, risco de estagnação econômica, ameaças explícitas à democracia, a incompetência e a corrupção generalizada do Governo Federal e aquela incerteza inquietante se o vencedor das eleições de 2022, independente de quem seja, vai assumir em janeiro de 2023. Além de todas essas questões, existe outra: há um descompasso tamanho entre gerações, principalmente na política, que interfere diretamente nas relações pessoais, principalmente familiares. Talvez o verbo não seja interferir, mas azedar ou inviabilizar. Histórias similares à contada no começo do episódio são populares o suficiente para que você, muito provavelmente, não precise se esforçar para lembrar de alguém. Talvez a história seja a sua.

Ao cooptar uma parcela da população para uma realidade paralela moldada e transmitida por, majoritariamente, celulares, o bolsonarismo ergueu uma muralha que dificultou as relações de milhões de pais e filhos, avós e netos e condenou uma batelada deles à morte.

Deixemos algo claro: não é algo que acontece com todo mundo e, dada a implosão do governo Bolsonaro nos últimos meses, demonstrada pelas pesquisas, o fenômeno já deve ter sido pior. Há, porém, um inegável fato capturado desde 2019 nas mesmas pesquisas: o atual governo tem um apoio muito maior em uma fatia mais velha da população que entre os mais novos. Replica-se a mesma quebra que tem nos Estados Unidos, né: resistência a vacinas e a crença de que o Trump ganhou a eleição de 2020 são muito maiores entre os mais velhos. É algo que não parece exclusivo do atual governo. Governos com viés conservador encontram mais apoio entre os mais velhos e mais resistência entre os mais jovens desde que o ser humano passou a se organizar em sociedades. Mas a escala aqui é diferente, não apenas por Bolsonaro ocupar orgulhosamente uma extrema-direita que flerta abertamente com autocratas fascistas, mas também pela importância basilar que a mentira, contada em fluxos constantes e blindada de maiores consequências, tem nas estratégias de campanha e governo de Bolsonaro.

No Tecnocracia da quinzena a gente vai pensar alto para tentar entender em quais pilares esse choque geracional se sustenta e, principalmente, como a tecnologia, do uso excessivo de apps de mensagem a um traço de analfabetismo digital, fizeram com que o bolsonarismo cavalgasse a geração dos nossos pais. A cada 15 dias, o Tecnocracia costura artigos acadêmicos, histórias do passado, livros de sociologia e umas piadas que constrangeriam seus pais bolsonaristas (para meu grande orgulho) para mostrar como tecnologia e política estão profundamente entrelaçadas e deverão continuar pelas próximas décadas. Se você acha que a tecnologia está apartada da política em 2021, eu tenho 55 episódios prontos provando o contrário. Eu sou o Guilherme Felitti e você já sabe: o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Por a partir de R$ 16 mensais, você ouve episódios do Tecnocracia ao vivo uma vez por mês.

Organizemos, então, algumas ideias. Quando eu falo que o bolsonarismo cavalgou a geração dos nossos pais com ajuda da tecnologia, suponho que você tenha entre 25 e 45 anos e seus pais estejam entre os 50 e 80 anos, um pouco para mais, um pouco para menos.

Seria leviano e até meio burro acreditar que só a tecnologia é responsável pelo bolsonarismo. Não é. Existem centenas de cientistas sociais, antropólogos e analistas políticos, alguns excelentes, tentando mastigar o que vem sendo o Brasil desde 2013 para explicar o fenômeno Bolsonaro (fenômeno mais como em “fenômeno natural que destrói uma região” do que como sinônimo de competência extrema, como Ronaldo Fenômeno).

Há uma questão ainda não totalmente resolvida deste recorte de tempo sobre a relevância da tecnologia na ascensão de Bolsonaro: teria ele chegado ao Palácio do Planalto sem ferramentas de comunicação pulverizadas e online? Eu tendo a achar que não — a estratégia de produção em escala industrial de memes e factoides políticos, incluindo caminhões de mentiras explícitas, tudo isso distribuído por páginas do Facebook e em grupos de WhatsApp, deu força para posicionar o candidato no melhor lugar para surfar a onda antipetista. Como já falamos no Tecnocracia #35, enquanto os outros partidos e candidatos davam de ombros para a internet e apostavam tudo na TV (ou em projetos tecnológicos utópicos, como Haddad registrando seu plano de governo no blockchain), Jair Bolsonaro, sob a coordenação do filho Carlos (Republicanos-RJ), colocou de pé uma máquina de propaganda, montada durante anos, para uma campanha baseada no tripé memes-WhatsApp-mentiras. Na parte WhatsApp está o já comprovado impulsionamento de mensagens, proibido pela legislação eleitoral, que o TSE julgará. Nesse aspecto, é inegável que a tecnologia tem papel preponderante.

O que nos leva ao problema principal: essa máquina de propaganda, junto aos ataques constantes à mídia tradicional, tem como objetivo manter sua base alimentada apenas por conteúdos publicados em ambientes controlados pelo bolsonarismo, especialmente grupos de WhatsApp e, para 2022, Telegram. Essa alimentação incessante de delírio cria uma base hipnotizada, nos moldes de dinâmicas vistas em seitas. Falaremos mais disso adiante. Essa dinâmica se equilibra em duas bases: a primeira é a montagem da máquina. A outra é a aderência — é preciso que as pessoas tenham razões para ficar ali, num loop infinito de delírio. Comecemos pela montagem.

O primeiro fator fundamental que ajuda a explicar como o bolsonarismo cavalgou a geração dos nossos pais é a desintermediação. Durante séculos, se você, candidato(a), quisesse falar constantemente com o público em geral, precisaria passar pela mídia — ir aos debates, dar entrevistas a jornais, participar de programas de TV. Só conseguia driblar essas situações potencialmente desconfortáveis quem comandasse um estado autocrático, algo que não fosse uma democracia. A internet mudou ao permitir que, mesmo em democracias, candidatos mantivessem uma conexão direta com seu público e, ainda assim, as chances de se elegerem.

Todo autocrata, independente da posição na matriz ideológica, faz questão de usar a tecnologia disponível na sua época para falar diretamente ao povo, como explicado pela pesquisadora e professora da Universidade de Nova York, Ruth Ben-Ghiat, no livro Strongmen: Mussolini to the present (ainda sem edição no Brasil). Foi assim com Benito Mussolini e os cinejornais entre as décadas de 1920 e 1940, Adolf Hitler com o rádio (o Terceiro Reich construiu um rádio popular chamado de Volksempfänger para ajudar a propagar a mensagem), Hugo Chávez e Nicolás Maduro com a televisão (são bem conhecidos os programas dominicais de horas e horas de Chávez na TV venezuelana). Os déspotas digitais pioneiros, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, usam o Twitter e, no caso do segundo, os grupos de mensagem. A maneira como podemos entender os déspotas digitais, dos antigos aos atuais, foi detalhada profundamente no primeiro episódio da terceira temporada do Tecnocracia.

Tecnocracia #55: Como o bolsonarismo usou a tecnologia para prender nossos pais em uma realidade paralela (1) Technocracy #55: How Bolsonarism used technology to trap our parents in a parallel reality (1) Tecnocracia #55: Cómo Bolsonaro usó la tecnología para atrapar a nuestros padres en una realidad paralela (1) 技术统治 #55:博尔索纳罗如何利用技术将我们的父母困在平行现实中 (1)

É uma história que todo mundo conhece, viveu ou está vivendo. Enfermeira e epidemiologista, Maria Cristina Willemann vinha alertando desde fevereiro de 2020 sobre os potenciais efeitos nocivos de um vírus detectado na China e como se proteger dele. Os alertas de Maria Cristina não estavam restritos a seus familiares, amigos e vizinhos. A epidemiologista deu algumas entrevistas tanto para a mídia local em Santa Catarina, onde vive, como para a nacional. Em agosto de 2020, por exemplo, lá estava Maria Cristina falando sobre a pandemia de Covid-19 para o Jornal Hoje, da TV Globo.

Para o jornal, ela deu direcionamentos que não soam como enorme surpresa para qualquer pessoa acompanhando o desenrolar da pandemia: “É importante que a população entenda que nós ainda estamos em franca expansão da pandemia em nosso Estado e é preciso tomar cuidado. Não frequentem locais que não estejam adequados. Não frequentem locais onde possa haver qualquer aglomeração de pessoas.” A entrevista ao Jornal Hoje é um marco para ela, não só pela relevância nacional, mas porque no dia seguinte o pai de Maria Cristina foi internado em estado grave com a doença. Dias depois, ele morreu.

Segundo Maria Cristina, o pai contraiu a Covid-19 por não seguir os próprios conselhos que a filha dava a milhões de brasileiros na TV e nos jornais. Abre aspas para a Maria Cristina na reportagem da BBC Brasil que conta toda a história: “É muito frustrante saber que estou desde o começo da pandemia trabalhando para evitar o adoecimento das pessoas, mas não consegui convencer o meu próprio pai a seguir as medidas adequadas. É um misto de frustração e raiva.”

É uma sensação familiar para você, bonitinho, bonitinha?

Nas primeiras semanas da pandemia, o pai de Maria Cristina, preocupado com as notícias que vinham do mundo inteiro, se isolou com a mulher em casa. Conforme as semanas passavam, porém, o isolamento foi perdendo o sentido para ele. “Aos poucos, ele foi voltando à rotina normal. Como ele saía de casa várias vezes e não pegava o coronavírus, pode ter pensado que não pegaria em nenhum momento. Então, cada vez mais foi voltando às atividades de antes”, disse ela.

Uma parte relevante dessa mudança de postura do pai dela está relacionada às informações consumidas sobre a pandemia. Ainda que tivesse acesso livre à filha, mestra e pesquisadora em epidemiologia, o pai preferia se informar de outra maneira: pelos grupos de WhatsApp. O pai de Maria Cristina repetia todas as teorias que qualquer pessoa que acompanhe o papel do Governo Federal e do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia conhece.

“Ele recebia as informações falsas, como sobre a cloroquina, pelo WhatsApp, que era o meio de comunicação que ele mais usava. Por mais que dissessem na televisão que não tinha evidência científica sobre a cloroquina, ele preferia acreditar no WhatsApp. Por mais que eu falasse tudo pelos critérios científicos, ele preferia acreditar nas conversas dos amigos, nas mensagens de WhatsApp… Ele pensava: se para tudo tem um tratamento, por que para a Covid não vai ter?”

O pai adorava dominó e jogava em um boteco com os amigos. “O bar era um local fechado, com algumas janelas abertas. Havia uma placa que dizia que o uso da máscara era obrigatório, mas não era isso que acontecia na prática, porque as pessoas bebiam e jogavam ao mesmo tempo. O meu pai, com certeza, jogava sem máscara. Tenho plena convicção de que ele contraiu o coronavírus no bar. Soube que muitos frequentadores do local também adoeceram no mesmo período, porque [entre o fim de julho e o começo de agosto] foram semanas de altíssima transmissão do vírus em Lages”, a cidade catarinense onde ele morava.

Essa reportagem da BBC Brasil, (que) foi apurada e escrita pelo jornalista Vinícius Lemos, foi publicada em janeiro. A gente não sabia em janeiro, mas os piores dias da pandemia ainda estavam diante de nós: em março, a gente chegou ao assustador número de 3 mil mortos diários na média móvel. A reportagem tem algumas fotos muito bonitas da vida que a gente tem com nossos pais e mães, da forma como eles estão lá (na maioria das vezes) nos acompanhando em momentos cruciais — lá está pai e filha na formatura dela, ou então ela, ainda bebê rechonchudo e com um chapeuzinho branco, no colo do pai orgulhoso. E eu vou te aconselhar a clicar na reportagem da BBC para lê-la inteira e ver as fotos. É sempre bom lembrar: isso que você tá ouvindo tem o roteiro na íntegra no Manual do Usuário, com os links. A história é triste por essa muralha erguida entre pai e filha que impedia uma comunicação efetiva feita por alguém que domina sua área, sabe o que fala e, sem a menor sombra de dúvida, quer o melhor para seu pai. No sentido contrário, eu acredito piamente que o pai da Maria Cristina a amava — e eu nunca troquei uma palavra com ela nem com ele, cujo nome eu não vou declarar em sinal de respeito.

O ponto aqui não é o amor. Quer dizer, é, mas como consequência, comparação, expectativa corrompida. A história da Maria Cristina é dolorosamente familiar para muita gente. O caso dela é mais extremo, já que ela é especialista e o pai morreu ao negligenciar a doença que ela instruiu milhões de pessoas a evitarem. Mas, em menor grau, essa relação complicada se replicou em milhares de casas pelo Brasil desde 24 de março de 2020, quando o presidente Jair Bolsonaro foi à TV e chamou o então ainda bastante desconhecido COVID-19 de “gripezinha”.

Literalmente, o prato do brasileiro está vazio, mas, metaforicamente, tem muita coisa para digerir — a fome volta a ser um problema endêmico, junto à pior pandemia do século, com quase 600 mil mortos, inflação mais alta desde 2014, risco de estagnação econômica, ameaças explícitas à democracia, a incompetência e a corrupção generalizada do Governo Federal e aquela incerteza inquietante se o vencedor das eleições de 2022, independente de quem seja, vai assumir em janeiro de 2023. Além de todas essas questões, existe outra: há um descompasso tamanho entre gerações, principalmente na política, que interfere diretamente nas relações pessoais, principalmente familiares. Talvez o verbo não seja interferir, mas azedar ou inviabilizar. Histórias similares à contada no começo do episódio são populares o suficiente para que você, muito provavelmente, não precise se esforçar para lembrar de alguém. Talvez a história seja a sua.

Ao cooptar uma parcela da população para uma realidade paralela moldada e transmitida por, majoritariamente, celulares, o bolsonarismo ergueu uma muralha que dificultou as relações de milhões de pais e filhos, avós e netos e condenou uma batelada deles à morte.

Deixemos algo claro: não é algo que acontece com todo mundo e, dada a implosão do governo Bolsonaro nos últimos meses, demonstrada pelas pesquisas, o fenômeno já deve ter sido pior. Há, porém, um inegável fato capturado desde 2019 nas mesmas pesquisas: o atual governo tem um apoio muito maior em uma fatia mais velha da população que entre os mais novos. Replica-se a mesma quebra que tem nos Estados Unidos, né: resistência a vacinas e a crença de que o Trump ganhou a eleição de 2020 são muito maiores entre os mais velhos. É algo que não parece exclusivo do atual governo. Governos com viés conservador encontram mais apoio entre os mais velhos e mais resistência entre os mais jovens desde que o ser humano passou a se organizar em sociedades. Mas a escala aqui é diferente, não apenas por Bolsonaro ocupar orgulhosamente uma extrema-direita que flerta abertamente com autocratas fascistas, mas também pela importância basilar que a mentira, contada em fluxos constantes e blindada de maiores consequências, tem nas estratégias de campanha e governo de Bolsonaro.

No Tecnocracia da quinzena a gente vai pensar alto para tentar entender em quais pilares esse choque geracional se sustenta e, principalmente, como a tecnologia, do uso excessivo de apps de mensagem a um traço de analfabetismo digital, fizeram com que o bolsonarismo cavalgasse a geração dos nossos pais. A cada 15 dias, o Tecnocracia costura artigos acadêmicos, histórias do passado, livros de sociologia e umas piadas que constrangeriam seus pais bolsonaristas (para meu grande orgulho) para mostrar como tecnologia e política estão profundamente entrelaçadas e deverão continuar pelas próximas décadas. Se você acha que a tecnologia está apartada da política em 2021, eu tenho 55 episódios prontos provando o contrário. Eu sou o Guilherme Felitti e você já sabe: o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Por a partir de R$ 16 mensais, você ouve episódios do Tecnocracia ao vivo uma vez por mês.

Organizemos, então, algumas ideias. Quando eu falo que o bolsonarismo cavalgou a geração dos nossos pais com ajuda da tecnologia, suponho que você tenha entre 25 e 45 anos e seus pais estejam entre os 50 e 80 anos, um pouco para mais, um pouco para menos.

Seria leviano e até meio burro acreditar que só a tecnologia é responsável pelo bolsonarismo. Não é. Existem centenas de cientistas sociais, antropólogos e analistas políticos, alguns excelentes, tentando mastigar o que vem sendo o Brasil desde 2013 para explicar o fenômeno Bolsonaro (fenômeno mais como em “fenômeno natural que destrói uma região” do que como sinônimo de competência extrema, como Ronaldo Fenômeno).

Há uma questão ainda não totalmente resolvida deste recorte de tempo sobre a relevância da tecnologia na ascensão de Bolsonaro: teria ele chegado ao Palácio do Planalto sem ferramentas de comunicação pulverizadas e online? Eu tendo a achar que não — a estratégia de produção em escala industrial de memes e factoides políticos, incluindo caminhões de mentiras explícitas, tudo isso distribuído por páginas do Facebook e em grupos de WhatsApp, deu força para posicionar o candidato no melhor lugar para surfar a onda antipetista. Como já falamos no Tecnocracia #35, enquanto os outros partidos e candidatos davam de ombros para a internet e apostavam tudo na TV (ou em projetos tecnológicos utópicos, como Haddad registrando seu plano de governo no blockchain), Jair Bolsonaro, sob a coordenação do filho Carlos (Republicanos-RJ), colocou de pé uma máquina de propaganda, montada durante anos, para uma campanha baseada no tripé memes-WhatsApp-mentiras. Na parte WhatsApp está o já comprovado impulsionamento de mensagens, proibido pela legislação eleitoral, que o TSE julgará. Nesse aspecto, é inegável que a tecnologia tem papel preponderante.

O que nos leva ao problema principal: essa máquina de propaganda, junto aos ataques constantes à mídia tradicional, tem como objetivo manter sua base alimentada apenas por conteúdos publicados em ambientes controlados pelo bolsonarismo, especialmente grupos de WhatsApp e, para 2022, Telegram. Essa alimentação incessante de delírio cria uma base hipnotizada, nos moldes de dinâmicas vistas em seitas. Falaremos mais disso adiante. Essa dinâmica se equilibra em duas bases: a primeira é a montagem da máquina. A outra é a aderência — é preciso que as pessoas tenham razões para ficar ali, num loop infinito de delírio. Comecemos pela montagem.

O primeiro fator fundamental que ajuda a explicar como o bolsonarismo cavalgou a geração dos nossos pais é a desintermediação. The first fundamental factor that helps explain how Bolsonarism rode our parents' generation is disintermediation. Durante séculos, se você, candidato(a), quisesse falar constantemente com o público em geral, precisaria passar pela mídia — ir aos debates, dar entrevistas a jornais, participar de programas de TV. Só conseguia driblar essas situações potencialmente desconfortáveis quem comandasse um estado autocrático, algo que não fosse uma democracia. A internet mudou ao permitir que, mesmo em democracias, candidatos mantivessem uma conexão direta com seu público e, ainda assim, as chances de se elegerem.

Todo autocrata, independente da posição na matriz ideológica, faz questão de usar a tecnologia disponível na sua época para falar diretamente ao povo, como explicado pela pesquisadora e professora da Universidade de Nova York, Ruth Ben-Ghiat, no livro Strongmen: Mussolini to the present (ainda sem edição no Brasil). Foi assim com Benito Mussolini e os cinejornais entre as décadas de 1920 e 1940, Adolf Hitler com o rádio (o Terceiro Reich construiu um rádio popular chamado de Volksempfänger para ajudar a propagar a mensagem), Hugo Chávez e Nicolás Maduro com a televisão (são bem conhecidos os programas dominicais de horas e horas de Chávez na TV venezuelana). Os déspotas digitais pioneiros, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, usam o Twitter e, no caso do segundo, os grupos de mensagem. A maneira como podemos entender os déspotas digitais, dos antigos aos atuais, foi detalhada profundamente no primeiro episódio da terceira temporada do Tecnocracia.