×

Мы используем cookie-файлы, чтобы сделать работу LingQ лучше. Находясь на нашем сайте, вы соглашаетесь на наши правила обработки файлов «cookie».


image

Gloss European Portuguese Level 3, O racismo invertido e a 'feitiçaria': histórias africanas para adultos

O racismo invertido e a 'feitiçaria': histórias africanas para adultos

A década dos afrodescendentes (2015-2024) é oportunidade para variadas reflexões, com enfoque particular aos processos de adaptação social, cultural e económica dos (classificados étnico-racialmente como) afrodescendentes nas sociedades ocidentais. Recentes investigações, como a de Joana Gorjão Henriques, vêm desmontando décadas de superficiais postulados em relação, por exemplo, à sociedade portuguesa, mergulhada no doce bálsamo da ausência de racismo. Outros autores mostram como ser-se cristão, branco e falar português são indicadores essenciais para a aceitação mais alargada do imigrante. Efetivamente sabemos que o francês, o inglês ou alemão que vem viver para Portugal não é um "imigrante", é um francês, inglês ou alemão que veio viver para Portugal. Imigrante não é o monsieur Cantona ou a Madonna, são o Sergiy, o Weverson ou o Djaló.

Pelo caldo social racializado, ainda que sob branda forma, a histórica presença africana em Lisboa, que Isabel Castro Henriques tem batalhado para fazer caber na memória histórica nacional, é um facto ignorado, silenciado em favor daquilo que Triaud chama de memória instituída e que é, toda ela, politicamente intencional. Permanecemos um país que conta uma epopeia romantizada, que se expressa numa grande transferência de pessoas de África para as américas, mas jamais conspurca a história de Portugal com a palavra "escravatura".

Em face da presença do racismo na nossa sociedade, uma das posições mais recorrentes é a da inversão do fenómeno. Esta inversão tende, correntemente, a aparecer como termostato do racismo biológico e cultural de longo-termo, uma espécie de maresia argumentativa que baliza o racismo e o suaviza — os negros também são racistas, entre eles e face aos brancos. Compreende, esta, uma elaboração muito mais refinada, porque quer fazer crer que há um ponto de partida comum, que não existe um caldo sociológico e histórico que condiciona e favorece tal inversão como resposta. Não podemos olhar esse racismo invertido sem o colocar no contexto de séculos de colonização, de escravatura, de racismo biológico, cultural e religioso, apresentado com um teor científico que o fundamentava.

O lugar da religião no processo

Neste quadro, não podemos negligenciar o lugar da religião na construção de conceções de superioridade racial e cultural. Desde as conceções teológicas católicas que elaboraram o inferno no continente africano, elucubração a partir do confronto com Homens queimados e as altas temperaturas daquela geografia, teve lugar a longa marcha da alteridade racializada e cristocêntrica. Padre António Vieira defendia que a escravidão de africanos representava a possibilidade do batismo e com ele da salvação das suas almas. Seria, portanto, a crueldade a expiar o pecado do corpo. Uma vez que a experiência do «outro» foi formulada a partir das categorias de pensamento culturalmente próprias, i.e., uma vez que as estruturas e sistemas religiosos africanos foram lidos a partir da lente moral, estética e teológica cristã, não surpreendem as afirmações que foram sendo feitas a propósito das religiões locais, formulações que três séculos depois continuam operatórias, ecoando nas mais correntes afirmações a propósito daquelas.

O mercador holandês David van Nyendael, em carta publicada postumamente, em 1705, escrevia “A religião deles é ridícula e confusa, tal que não sei por onde começar para a descrever. Eles fazem-nos crer que adoram Deus e o Diabo ao mesmo tempo…”. Maurice d'Elbée, curto tempo depois, afirmava que as religiões africanas eram “uma massa confusa de superstições ridículas”. Mais longe foi o missionário Nöel Baudin, afirmando, em 1884, no seu livro Fétichisme et féticheurs, que os deuses da África Ocidental eram "ídolos copiados dos mais horrorosos tipos de negros, com lábios grossos, nariz chato, e queixo fugidio, verdadeiras faces de velhos macacos".

De falsa idolatria, a paganismo bárbaro, missionários, viajantes, comerciantes e colonos, exprimiram as mais profundas e nefastas afirmações sobre as religiões na África subsaariana. Curioso facto foi a associação entre formas de culto africanas e católicas empreendida pelos missionários anglicanos. O reverendo Townsend, escrevia, em 1849, que "Os orixás são suas imagens e crucifixos. Não pode haver muita diferença entre papismo e paganismo", condenando, desta forma, a dimensão ritual da religião.

Entre a demonização e a exotização, as religiões africanas foram, e permanecem sendo, olhadas como suspeição, mal interpretadas a partir de olhares ocidentais, que postulam as fronteiras da noção de religião nas margens do cristianismo, e em Portugal do catolicismo. Curiosamente, tanto o catolicismo popular quanto as religiões africanas respondem aos mesmos estímulos, apresentando muito mais semelhanças do que à primeira vista se pode conceber. Os caminhos da dádiva, teorizados por Marcel Mauss, estão em ambos os universos religiosos, porque a troca entre o pedido e o dom é ritualizada, seja no ofertório seja na prece.


O racismo invertido e a 'feitiçaria': histórias africanas para adultos Reverse racism and 'witchcraft': African stories for adults

A década dos afrodescendentes (2015-2024) é oportunidade para variadas reflexões, com enfoque particular aos processos de adaptação social, cultural e económica dos (classificados étnico-racialmente como) afrodescendentes nas sociedades ocidentais. Recentes investigações, como a de Joana Gorjão Henriques, vêm desmontando décadas de superficiais postulados em relação, por exemplo, à sociedade portuguesa, mergulhada no doce bálsamo da ausência de racismo. Recent research, such as that of Joana Gorjão Henriques, has been dismantling decades of superficial postulates regarding, for example, Portuguese society, steeped in the sweet balm of the absence of racism. Outros autores mostram como ser-se cristão, branco e falar português são indicadores essenciais para a aceitação mais alargada do imigrante. Other authors show how being Christian, white and speaking Portuguese are essential indicators for the wider acceptance of the immigrant. Efetivamente sabemos que o francês, o inglês ou alemão que vem viver para Portugal não é um "imigrante", é um francês, inglês ou alemão que veio viver para Portugal. In fact, we know that the French, English or German who comes to live in Portugal is not an "immigrant", he is a French, English or German who came to live in Portugal. Imigrante não é o monsieur Cantona ou a Madonna, são o Sergiy, o Weverson ou o Djaló.

Pelo caldo social racializado, ainda que sob branda forma, a histórica presença africana em Lisboa, que Isabel Castro Henriques tem batalhado para fazer caber na memória histórica nacional, é um facto ignorado, silenciado em favor daquilo que Triaud chama de memória instituída e que é, toda ela, politicamente intencional. Through the racialized social background, even if in a soft form, the historical African presence in Lisbon, which Isabel Castro Henriques has been struggling to make fit into the national historical memory, is an ignored fact, silenced in favor of what Triaud calls instituted memory and which is, all of it, politically intentional. Permanecemos um país que conta uma epopeia romantizada, que se expressa numa grande transferência de pessoas de África para as américas, mas jamais conspurca a história de Portugal com a palavra "escravatura". We remain a country that tells a romanticized epic, expressed in a great transfer of people from Africa to the Americas, but never soils the history of Portugal with the word "slavery".

Em face da presença do racismo na nossa sociedade, uma das posições mais recorrentes é a da inversão do fenómeno. In view of the presence of racism in our society, one of the most recurrent positions is to reverse the phenomenon. Esta inversão tende, correntemente, a aparecer como termostato do racismo biológico e cultural de longo-termo, uma espécie de maresia argumentativa que baliza o racismo e o suaviza — os negros também são racistas, entre eles e face aos brancos. This inversion currently tends to appear as the thermostat of long-term biological and cultural racism, a kind of argumentative sea fog that balances racism and softens it - blacks are racists too, among themselves and vis-à-vis whites. Compreende, esta, uma elaboração muito mais refinada, porque quer fazer crer que há um ponto de partida comum, que não existe um caldo sociológico e histórico que condiciona e favorece tal inversão como resposta. This is a much more refined elaboration, because it wants to make people believe that there is a common starting point, that there is a sociological and historical background that conditions and favors this inversion as a response. Não podemos olhar esse racismo invertido sem o colocar no contexto de séculos de colonização, de escravatura, de racismo biológico, cultural e religioso, apresentado com um teor científico que o fundamentava. We cannot look at this inverted racism without placing it in the context of centuries of colonization, of slavery, of biological, cultural and religious racism, presented with a scientific tenor that substantiated it.

O lugar da religião no processo The place of religion in the process

Neste quadro, não podemos negligenciar o lugar da religião na construção de conceções de superioridade racial e cultural. In this framework, we cannot neglect the place of religion in the construction of conceptions of racial and cultural superiority. Desde as conceções teológicas católicas que elaboraram o inferno no continente africano, elucubração a partir do confronto com Homens queimados e as altas temperaturas daquela geografia, teve lugar a longa marcha da alteridade racializada e cristocêntrica. From the Catholic theological conceptions that elaborated hell on the African continent, elucubration from the confrontation with Burnt Men and the high temperatures of that geography, the long march of racialized and Christocentric otherness took place. Padre António Vieira defendia que a escravidão de africanos representava a possibilidade do batismo e com ele da salvação das suas almas. Father Antonio Vieira argued that the enslavement of Africans represented the possibility of baptism and with it the salvation of their souls. Seria, portanto, a crueldade a expiar o pecado do corpo. It would therefore be cruelty to atone for the sin of the body. Uma vez que a experiência do «outro» foi formulada a partir das categorias de pensamento culturalmente próprias, i.e., uma vez que as estruturas e sistemas religiosos africanos foram lidos a partir da lente moral, estética e teológica cristã, não surpreendem as afirmações que foram sendo feitas a propósito das religiões locais, formulações que três séculos depois continuam operatórias, ecoando nas mais correntes afirmações a propósito daquelas. Since the experience of the "other" was formulated from culturally proper categories of thought, i.e., since African religious structures and systems were read through the Christian moral, aesthetic, and theological lens, the claims that were made about local religions are not surprising.

O mercador holandês David van Nyendael, em carta publicada postumamente, em 1705, escrevia “A religião deles é ridícula e confusa, tal que não sei por onde começar para a descrever. The Dutch merchant David van Nyendael, in a letter published posthumously in 1705, wrote "Their religion is ridiculous and confusing, such that I don't know where to begin to describe it. Eles fazem-nos crer que adoram Deus e o Diabo ao mesmo tempo…”. They make us believe that they worship God and the Devil at the same time...". Maurice d'Elbée, curto tempo depois, afirmava que as religiões africanas eram “uma massa confusa de superstições ridículas”. Maurice d'Elbée, a short time later, claimed that African religions were "a confused mass of ridiculous superstitions. Mais longe foi o missionário Nöel Baudin, afirmando, em 1884, no seu livro Fétichisme et féticheurs, que os deuses da África Ocidental eram "ídolos copiados dos mais horrorosos tipos de negros, com lábios grossos, nariz chato, e queixo fugidio, verdadeiras faces de velhos macacos". The missionary Nöel Baudin went further, stating in his book Fétichisme et féticheurs in 1884 that the West African gods were "idols copied from the most hideous negro types, with thick lips, flat noses, and elusive chins, true faces of old monkeys.

De falsa idolatria, a paganismo bárbaro, missionários, viajantes, comerciantes e colonos, exprimiram as mais profundas e nefastas afirmações sobre as religiões na África subsaariana. From false idolatry, to barbaric paganism, missionaries, travelers, traders, and colonists have expressed the most profound and damaging claims about religions in sub-Saharan Africa. Curioso facto foi a associação entre formas de culto africanas e católicas empreendida pelos missionários anglicanos. Curious fact was the association between African and Catholic forms of worship undertaken by Anglican missionaries. O reverendo Townsend, escrevia, em 1849, que "Os orixás são suas imagens e crucifixos. Não pode haver muita diferença entre papismo e paganismo", condenando, desta forma, a dimensão ritual da religião. There can't be much difference between papism and paganism," thus condemning the ritual dimension of religion.

Entre a demonização e a exotização, as religiões africanas foram, e permanecem sendo, olhadas como suspeição, mal interpretadas a partir de olhares ocidentais, que postulam as fronteiras da noção de religião nas margens do cristianismo, e em Portugal do catolicismo. Curiosamente, tanto o catolicismo popular quanto as religiões africanas respondem aos mesmos estímulos, apresentando muito mais semelhanças do que à primeira vista se pode conceber. Os caminhos da dádiva, teorizados por Marcel Mauss, estão em ambos os universos religiosos, porque a troca entre o pedido e o dom é ritualizada, seja no ofertório seja na prece. The ways of the gift, theorized by Marcel Mauss, are in both religious universes, because the exchange between the request and the gift is ritualized, either in the offertory or in the prayer.