Disparada, com Jair Rodrigues, O ARRANJO #29 (English subtitles)
Teatro Record, Festival da Record, 1966
O cantor Jair Rodrigues entra no palco como sempre fazia, como o seu público se acostumou a vê-lo:
divertindo a plateia, batendo palma, plantando bananeira, todo mundo rindo, aquela algazarra de festival
Mas já na introdução, tocada por uma viola caipira, ele muda de postura: se posta sério, como um combatente,
com uma perna na frente da outra e olhar compenetrado
A plateia fica imediatamente em silêncio, e ouve-se então um dos melhores versos iniciais da história da música brasileira
Prepare o seu coração para as coisas que eu vou contar
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
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Disparada é uma música de Theo de Barros, com letra de Geraldo Vandré, lançada por Jair Rodrigues no II Festival da Record, em 1966
Vandré e Theo de Barros compuseram a música durante a turnê do espetáculo Mulher, Este Super-Homem,
montado pela Rhodia, nesse mesmo ano de 66
A Rhodia fabricava tecidos sintéticos, como lycra e poliéster,
e montava anualmente um espetáculo com música e desfiles de moda, para rodar o país
O diretor de propaganda da Rhodia, Lívio Rangan, queria uma sonoridade nova para o espetáculo,
que fugisse do estilo do samba jazz, tão em moda na época, de piano, baixo e bateria
Então nasceu a ideia de um trio com uma sonoridade regional,
que foi arregimentado pelo percussionista Airto Moreira, com Heraldo do Monte na viola caipira e Théo de Barros no violão
A ideia era um trio com pegada regional mas tocando uma música moderna, com um tratamento sofisticado
Lívio Rangan batizou o grupo com o nome de Trio Novo, e depois da turnê da Rhodia o grupo seguiu carreira
Com a entrada de Hermeto Pascoal na flauta, passou a se chamar Quarteto novo
O cantor desse espetáculo era Geraldo Vandré, e, conversando com Theo de Barros,
tiveram a ideia de compor uma música com a sonoridade que o Trio Novo estava fazendo nos shows da Rhodia
Vandré escreveu um letra longuíssima com esse tom regional, mas não deixava claro de que parte do país estava falando
Então o boiadeiro poderia ser do sul, do nordeste, do centro oeste, do interior de SP, de qualquer lugar, e isso deixou a música mais universal
Ficou empolgado com a música que Theo de Barros escreveu, tinha um tom épico, que combinava perfeitamente com a letra
O arranjo que eu vou analisar é exatamente o arranjo criado para o festival, uma criação coletiva de Vandré com o Trio Novo
UM POUCO DE HISTÓRIA
Jair Rodrigues nasceu no interior de São Paulo, em Igarapava, quase na divisa com o estado de Minas Gerais
Mas ainda era um bebê quando a família se mudou para o município de Nova Europa, ali perto mesmo
Não mudaram pro centro da cidade, mas sim pra uma fazenda onde a mãe e o padrasto do Jair trabalhavam
Na própria fazenda tinha uma vendinha onde eles compravam os mantimentos,
e o padrasto do Jair construiu a casa da família também no terreno da fazenda
Era uma casa de roça, muito simples, fogão a lenha, chão de terra batida e paredes de pau a pique
Essas paredes são feitas com uma armação de madeira ou bambu,
com um trançado de cipó, e depois é jogado o barro, que depois de seco funciona como parede
Jair Rodrigues, bem pequeno, já ajudava na roça, cortando a cana,
e aproveitava a passagem do carroção puxado por oito bois, levando a colheita para o engenho, para ficar chupando cana, enchendo a barriga
Dos tempos da roça, Jair Rodrigues se lembrava de ouvir música no rádio do vizinho, porque não tinha rádio na casa dele,
e dos bailes de sábado na fazenda, que eram mais animados se a colheita tivesse sido boa
Começou a cantar na noite ainda no interior
"Ele começou a carreira dele em São Carlos, ele começou num restaurante chamado bambu
Ele acabou sendo contratado pra cantar no restaurante, e a partir dali começou essa coisa de se envolver mais com a música
Até que o irmão dele, meu tio Jairo, levou ele pra São Paulo, porque meu tio já morava ali em Osasco"
Com alguns anos como crooner na noite paulistana,
ele recebeu o primeiro convite para gravar um compacto pela Companhia Brasileira de Discos, em 1962
O compositor Alfredo Borba compôs uma música apostando que o Brasil seria bi-campeão do mundo de futebol no Chile,
naquele ano de 62
A música se chamava "O Marechal da Vitória" e era uma homenagem ao chefe da delegação da seleção brasileira,
Paulo Machado de Carvalho
O Brasil foi campeão, mas a música não fez muito sucesso, só tocou mesmo na rádio e Tv Record, e não por acaso:
Paulo Machado de Carvalho era o dono da Record!
Em 1964 ele gravaria o seu primeiro sucesso, uma música diferente, quase falada, que ele conheceu numa viagem ao Rio de Janeiro
Quando voltou pra São Paulo, pra se apresentar na boate Stardust, ele quis ensaiar com o pianista que o acompanhava, Hermeto Pascoal, e falou:
"Hermeto, trouxe uma música do Rio, do Alberto Paz e Edson Menezes, vamos ensaiar?
Aí disse: então vai, qual é o tom? Eu falei, o tom eu não sei, é 'Deixa que digam que pensem...
Aí ele parou, ficou olhando pra mim e falou:
'Ô Furico, eu não sei acompanhar conversa, não! Que diabo de música é essa? Que diabo de diabo é isso?"
É considerado por alguns o primeiro rap brasileiro, algo contestável, mas o importante é que a música fez sucesso e é tocada até hoje
Aí o Hermeto falou: 'Furico, você é danado, é a primeira vez que eu acompanho conversa, mas tudo bem!"
No ano seguinte, 1965, Elis Regina ganhou o primeiro lugar e o prêmio de melhor intérprete no 1o Festival da TV Excelsior,
o primeiro festival da chamada Era dos Festivais
O radialista Walter Silva, conhecido como Pica-pau, já admirava Elis desde o primeiro disco dela,
quando a gravadora quis transformá-la em uma nova Celly Campelo, e obviamente não deu certo
Mesmo antes da final já estava claro que Arrastão seria um divisor de águas na carreira da Elis
E Walter Silva alugou o Teatro Paramount, de dois mil lugares,
para uma temporada com Elis começando dois dias depois do festival, o que era um certo risco
Walter Silva pensou no show com Elis dividindo o palco com Baden Powell, o maior violonista do Brasil, e o famoso Zimbo Trio acompanhando
Mas Baden e o Zimbo não poderiam fazer a temporada, porque tinham outros compromissos profissionais
Para o lugar do Zimbo, chamou o Jongo Trio, mas substituir Baden Powell não ia ser fácil...
Em uma noite, Walter e a mulher, Déa, estavam na boite Stardust com amigos,
quando Déa prestou atenção no crooner negro, alto, de voz forte e cativante
E perguntou ao marido: Walter, porque você não convida esse rapaz pra cantar com a Elis?
E ele: O Jair? Ele não tem nada a ver com a Elis, e muito menos a ver com o Baden Powell!
Mas quando Jair cantou o seu sucesso, Deixa que digam, a boite explodiu, e Walter resolveu seguir o conselho da mulher
Não haveria tempo para ensaios, eles fizeram apenas um, na tarde da estreia
e combinaram de cada um fazer uma parte solo e no final se juntavam, pra um medley de sambas
Tanto Jair quanto Elis já tinham muitos anos de crooner na noite, então montar aquele medley não foi difícil para eles, e o show foi um grande sucesso
Foi lançado em disco com o nome de Dois na Bossa, e também foi um grande sucesso de vendas
Paulinho Machado de Carvalho, filho do dono, era o diretor da TV Record,
e imaginou um programa de TV com Elis e Wilson Simonal, mas Simonal era contratado da TV Tupi
O substituto natural foi Jair Rodrigues, com quem Elis já tinha uma química comprovada no palco
O programa se chamou O Fino da Bossa, e estreou no dia 17 de maio de 65,
só 41 dias depois da final do festival que consagrou Elis, com Arrastão;
parece que as coisas andavam muito rápido nos anos 60!
O Fino da Bossa foi um sucesso incrível, alavancando a carreira dos dois apresentadores
Como eram contratados na TV Record, era natural que os dois fossem convocados pra defender,
como se dizia na época, uma música no festival do ano seguinte, 1966
A princípio Jair cantaria Canção pra Maria, de Paulinho da Viola e Capinam, um samba, e Jair nessa época era conhecido como sambista
O diretor do festival, Solano Ribeiro, tinha escolhido Jair pra cantar esse samba como uma escolha óbvia,
mas mudou de ideia quando ouviu uma das últimas inscritas no festival: Disparada
Solano sabia que Jair tinha crescido no interior de São Paulo e já o tinha visto cantar modas de violas, canções sertanejas
"Ele tinha realmente essa ligação com o interior, com o sertanejo, com esse universo"
O difícil foi convencer Geraldo Vandré a não ser o intérprete da sua música
Solano achava que Vandré ainda não era muito conhecido,
e achava também que ele não tinha cancha pra encarar uma música que exigia tanta força interpretativa
Em outras palavras: Solano tinha noção da força da música
e achava que ela precisava de um intérprete profissional pra fazer a música chegar onde deveria, e convidou Jair
Mas Jair também relutou e só se convenceu quando Hilton Acioli, do Trio Marayá,
tocou a música na casa dele, e a mãe do cantor falou, com um forte sotaque do interior:
"Nossa meu fio, a minha mãe me chamava de meu fio, se ocê,
defender essa musga, porque ela não falava música, se ocê defendê essa musga ocê vai ganhar"
O que Jair não sabia era que Vandré não tinha gostado do nome dele como o intérprete de Disparada,
e tinha ficado incrédulo, no mínimo, porque ele só conhecia o Jair sambista e irreverente da tv, que chamava todo mundo de cachorrão
No primeiro dia do ensaio Vandré chegou já falando: "Ô cachorrão, não vai brincar com a minha música, que a minha música é séria!"
Jair era brincalhão mas tinha o pavio curto e retrucou: "Primeiramente você nem falou boa tarde e já vem me dando bronca? Ah, vai à m...!"
Vandré se desculpou, disse que não queria ofender, mas que precisava dizer aquilo
Nem precisava, Jair já tinha entendido a letra e sentia que a música era muito forte
e que poderia tirá-lo da prateleira de sambista e revelar o grande intérprete que ele era, o que de fato aconteceu
No dia da final do festival, todos já sabiam que a vencedora sairia entre Disparada e Banda, de Chico Buarque, interpretada por Chico e por Nara Leão
O Brasil inteiro estava dividido entre as duas músicas, o clima era de Palmeiras e Corínthians, ou Vasco e Flamengo
A plateia do teatro também estava dividida, mas não havia hostilidades, era um clima amistoso
O resultado foi apertado, mas A Banda ganhou por uma margem muito pequena
Chico Buarque avisou ao Paulinho Machado de Carvalho que não aceitaria ser declarado o vencedor, disse que devolveria o prêmio no palco
O próprio Chico, depois eu fiquei sabendo, o Chico não quis entrar, porque o Chico achava Disparada melhor do que A Banda"
Surgiu a hipótese de se declarar empate, o que Chico concordou, e era o resultado dos sonhos para o canal de televisão, todos sairiam satisfeitos
Convidada pela produção do festival, Dona Conceição Maria Rosa Martins Rodrigues de Oliveira
estava em cima do palco vendo o seu filho, que cresceu na roça, ajudando a mãe a cortar cana,
recebendo o primeiro lugar do festival e o prêmio de melhor inérprete
"Ali está Jair Rodrigues cumprimentado pela Dona Conceição, vibrantemente aplaudido pelo auditório presente no Teatro Record"
1. MELODIA É interessante notar que tanto Disparada quanto A Banda, não apresentam os caminhos harmônicos elaborados como os da Bossa Nova
As duas usam acordes e sequências harmônicas pré-Bossa Nova, como numa busca pelas raízes da música brasileira
Era, de uma certa forma, uma volta ao passado, um resgate do nacionalismo,
que caracterizou muito essa fase, o início do que chamamos de MPB
Disparada começa como uma moda de viola lenta, melodiosa
Quando entra a parte mais ritmada da música há uma certa mistura de estilos musicais, ao meu ver
Tem um pouco de baião, mas principalmente tem o pagode de viola, ou pagode caipira, um estilo criado por Tião Carreiro
No Brasil polarizado de 1966, a disputa de Disparada e A Banda também teve contornos políticos:
os conservadores, a família tradicional brasileira, torcia por A Banda, que era claramente apolítica,
e segundo o próprio Chico Buarque, propositadamente alienada
Disparada era a preferida da juventude e de quem era contra o regime militar da época,
apesar de não ter nada na letra de caráter explicitamente político
Mas, naquela época, mesmo algo vagamente político servia como estopim para estravasar sentimentos reprimidos pela situação política
Quando Jair cantava os versos que diziam que gado a gente marca, mas com gente é diferente, a plateia vinha abaixo!
3. ORQUESTRAÇÃO Um dos motivos do impacto da apresentação de Disparada no festival foi, seguramente,
a presença de instrumentos que não eram comuns na música popular brasileira
Mesmo o uso da viola caipira, um tradicional instrumento da música do interior do Brasil, não era muito comum na música urbana brasileira
Só a presença dela no palco do festival já causava uma estranheza
Mas o instrumento que impressionou mesmo em Disparada foi a queixada de burro, que nunca tinha sido usada no Brasil
Vandré imaginou para o arranjo um som que lembrasse uma chicotada,
e o percussionista Airto Moreira testou algumas opções, como o som de tamancos batendo,
os blocos de madeira, os wood blocks tradicionais, mas nenhum funcionou
Então Airto se lembrou de ter visto uma orquestra espanhola de música flamenca na sua juventude em Curitiba,
e o percussionista da orquestra batia em uma queixada, produzindo um som de grande efeito
O trio Novo participou da primeira eliminatória, mas no dia da final eles não participaram
porque estavam viajando com a Rhodia, então contrataram um grupo para substituí-los
O Trio Marayá também participou, fazendo vocais e colaborando nos violões
3. A FORMA DO ARRANJO Disparada é uma música com duas partes, A e B, que se repetem em diversas combinações durante a música
A parte A tem 12 compassos e a parte B tem 16 compassos
Dá pra considerar a parte B como sendo uma espécie de refrão, porque a melodia vai ao ápice dela, é a parte de "Na boiada já fui boi..."
Mas não é exatamente um refrão porque a letra não se repete, são duas letras diferentes
Como eu já falei, Disparada começa com uma parte lenta e depois tem a parte mais rápida, mais pra frente
A forma desse arranjo é assim: introdução de 8 compassos, depois duas vezes a parte A,
uma vez a parte B e repete a introdução; a partir daí começa a parte mais ritmada, digamos assim
Depois são duas partes A's, uma ponte de um compasso, mais duas partes A's e um B
De novo a ponte de um compasso, uma sequência A B A e a coda
A mistura entre o estilo sertanejo e o nordestino nessa canção fica bem explícita na introdução,
em que a viola toca na escala mixolídia, uma escala muito comum na música nordestina
A introdução é mais ou menos assim:
Essa nota, o fá natural, é que caracteriza a escala mixolídia,
que está presente em músicas nordestinas como Baião, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
A introdução começa com a viola caipira e suas cordas duplas, dando esse som cheio, seguindo a escala mixolídia
A primeira parte é lenta, uma moda de viola, servindo como apresentação do tema, na letra e na música
É interessante o uso na música da repetição de versos, lembra canções folclóricas
Aparece o vocal, a voz aguda fazendo a terça tão tradicional da música sertaneja e a voz mais grave completando a harmonia
E a percussão marca o ritmo no instrumento chamado xequerê, nessa gravação não tem bateria
Repete a intro pra entrar na parte mais rápida
E se ouve o primeiro toque da queixada
O vocal agora faz uma acompanhamento, um background, harmônico e rítmico
A ponte, a passagem instrumental, também usa a escala mixolídia
O ataque da queixada está sempre no contratempo, na síncope, nunca no tempo forte
O vocal agora canta em uníssono com o Jair Rodrigues, dando peso à melodia
E agora abre o mesmo vocal na parte B, no refrão
A ponte mais uma vez, e volta o uníssono
Uma rápida abertura de vozes com a melodia
Vocais abertos na coda
E a citação da intro pra terminar
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Muito obrigado, até uma próxima
"Cara, aconteceu com essa interpretação dele uma coisa que eu acho que é muito rara de acontecer,
que é um artista dar a interpretação definitiva
Por mais que você chame outros intérpretes com muita categoria,
é difícil você bater essa interpretação dele ali, ao vivo naquele festival"
"Atenção, senhoras e senhores falta um prêmio, falta os senhores tomarem conhecimento de mais um prêmio
A viola de prata a ser entregue àquele que o júri considerou o melhor intérprete
É ele, Jair Rodrigues!"