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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 1. A grande aposta - Part 2

1. A grande aposta - Part 2

O racismo é uma construção humana e a escravidão também.

A escravidão é uma instituição.

E ela perdurou porque você tinha um grupo de senhores escravizados,

que era um grupo que também formou a elite política brasileira,

ou as elites políticas brasileiras,

na sua multiplicidade, nas suas discordas,

na sua construção de um sistema de direitos,

na sua construção de um sistema de direitos.

E aí, a gente tem um grupo de senhores escravizados,

que é um grupo que também formou a elite política brasileira,

na sua multiplicidade, nas suas discordâncias,

elas tinham essa base comum,

que era o fato de eles serem proprietários de escravizados.

Em dezembro de 1922, foram criados os símbolos nacionais,

como a bandeira do Império.

Você já olhou bem para a bandeira do Império?

Ela tem o mesmo retângulo verde da bandeira de hoje,

representando a casa de Bragança, que é a família do Dom Pedro.

O losango amarelo representa a casa da família da Maria Leopoldina.

Tem a cruz da Ordem de Cristo,

tem umas estrelas representando as províncias e tem a coroa.

Acima da coroa, ainda tem mais uma cruz,

simbolizando que Deus estava acima de tudo.

Mas, além de tudo isso, tem dois raminhos de folha,

que ninguém costuma reparar.

Esses dois ramos emolduram o brasão.

De um lado, um ramo de café, do outro, um ramo de tabaco.

Eles estão unidos pelo laço da nação, uma fitinha verde e amarela.

E o Dom Pedro disse que a ideia era que esses ramos representassem

as riquezas da nação, café e tabaco.

Daí eu te pergunto, quem trabalhava e colhia,

quem trabalhava e morria, para gerar essas duas riquezas nacionais?

A Avenida Paulista, principal palco das manifestações em São Paulo,

além de receber manifestantes em defesa das reformas do governo Jair Bolsonaro,

abriu espaço para a defesa de outras pautas mais alternativas,

entre elas, a defesa da monarquia.

Há pouco tempo atrás, nós éramos milhões, mas milhões silenciosos.

Agora nós já estamos na rua, no Brasil todo.

As pessoas já veem a bandeira do Império e falam,

olha, monarquia, monarquia.

Agora, seria errado dizer que não teve guerra na Independência no Brasil.

Teve guerra, teve sangue derramado, só que não foi sangue azul.

As guerras de Independência foram guerras que aconteceram em diferentes partes do país

e que tiveram, obviamente, dimensões distintas,

nas quais as forças militares desse recém-criado país,

com uma ajuda fundamental da população agora brasileira,

lutam pela expulsão das tropas portuguesas.

E são movimentos que têm um apelo popular muito grande.

E o apelo popular não é que as pessoas ficavam na janela das suas casas batendo palma.

O apelo popular é porque as pessoas vão para as ruas com faca,

com que elas estivessem, porque a gente não está falando de um exército organizado ainda.

A mais conhecida dessas guerras, e a que teve maior repercussão, foi na Bahia.

Por meio de um movimento que tem uma participação popular significativa,

em que a gente tem, pelo menos, a participação de três mulheres que ganharam,

em escalas diferentes, por causa das suas pertencências raciais,

um destaque na história brasileira.

Uma dessas mulheres é a Maria Filipa, né?

Sim, que é a mulher negra que a gente conhece de forma mais emblemática

nesse período da história do Brasil.

Primeiro, se apresenta, por favor, para o ouvinte,

seu nome completo e como você se descreve.

Bem, eu sou Valdíria Lopes, eu sou pedagoga,

especialista em metodologia dos sinos africanos e afro-brasileiros.

A guerra da independência na Bahia começou em fevereiro de 1922.

Primeiro, um português foi nomeado pelas cortes para ser governador de armas da Bahia.

A população protestou. A Bahia estava num barril de pólvora.

Daí, os soldados portugueses atacaram os militares brasileiros.

Maria Filipa, para mim, ela representa os negros e negras que perderam a vida,

que foram invisibilizados por séculos.

E aí você não vê na história, nos livros, falando desses corpos que foram jogados.

E Maria Filipa, para mim, representa a presença do negro

na luta da independência do Brasil na Bahia.

A linha de frente da resistência brasileira era formada por pessoas negras,

as chamadas tropas de cor.

Enquanto os negros resistiam em Salvador, a turma rica e branca fugiu para suas fazendas no Recôncavo.

O Dom Pedro contratou um mercenário francês, o Pierre Labatute, para liderar as tropas brasileiras.

Aqui em Taparica foi onde houve mais sangue derramado na luta da independência.

Taparica é um lugar singular quando fala das consequências das lutas pela independência.

Mas muito poucas pessoas sabem disso e isso é muito pouco falado.

Na ilha de Taparica, que fica na Bahia de Todos os Santos,

a Maria Filipa de Oliveira, uma mulher negra, pescadora, marisqueira e quitandeira,

teria liderado um grupo que incendiou barcos dos portugueses.

E as mulheres lideradas por ela também teriam dado uma surra de cansanção.

Sabe cansanção? É uma planta que dá queimadura se você encostar.

Elas teriam dado uma surra de cansanção nos portugueses.

Eu estou colocando esse tanto de teria porque não tem muito documento atestando todos esses feitos dela.

Mas a gente sabe como que o Brasil trata documento,

especialmente se for um documento envolvendo o protagonismo de uma mulher e de uma mulher negra 200 anos atrás.

E no fim das contas, o que importa mesmo é o que a Maria Filipa significa.

Muitos negros foram lutar pela sua independência, né?

A gente sabe disso, mas a história não conta.

Maria Filipa é um elemento pedagógico, didático, que faz com que a gente construa esse discurso que não foi escrito.

A gente ainda sofre muito preconceito porque a maioria dos acadêmicos diz que é um mito, que ela não existiu.

Mas a gente entende que a história, ela é fojada com as memórias.

Eu me sinto contemplada em vez de heroína.

Eu não sou heroína. Para mim, eu não preciso que acadêmico nenhum ache importante.

Ela é o negro na luta pela independência.

Ela tira a gente da invisibilidade dos livros didáticos, do livro de história.

Essa mulher é muito forte.

A guerra da independência só terminou de fato em julho de 1923,

quando os soldados portugueses partiram de volta para a terrinha.

Foi num 2 de julho e por isso que a data até hoje é tão celebrada na Bahia.

É preciso a constituição de uma frota para abafar a guerra na Bahia,

que é onde foi feita a independência, é bom que se diga, com sangue,

e com sangue de escravos, e com sangue de afromexistas e afro-brasileiros que queriam a independência.

Esta é a mérida e o priori.

Então você vê que teve guerra e que teve morte.

Teve independência ou morte.

Só que quem morreu era preto e pobre.

A essa altura, o Dom Pedro já tinha sido coroado,

mas ele não quis ser rei, ele quis ser imperador do Brasil.

A autoestima do homem hétero branco é imbatível.

Para criar a Marinha de Guerra brasileira, o Bonifácio pediu ajuda para a Inglaterra,

e os ingleses, que continuaram como grandes parceiros comerciais do Brasil,

seguiram pressionando também pelo fim do tráfico negreiro.

Daí, para convencer a Inglaterra, o Bonifácio disse para eles que reprovava o tráfico

e que só não interrompia porque isso podia ameaçar a existência do novo governo.

Mas que em dois ou três anos, o mal, e foi assim que ele chamou, o mal teria fim.

O Bonifácio chegou a dizer que sabia que o preço a pagar pela unidade do império era a escravidão.

Um preço que gerações e gerações de pessoas não tinham.

Um preço que gerações e gerações de pessoas negras, as que conseguiram sobreviver, estão pagando até hoje.

Bom, todo país novo precisa de leis, precisa de uma constituição.

Em maio de 23, foi instaurada a Assembleia Nacional Constituinte.

Os parlamentares eram quase todos homens brancos, ricos, alguns poucos afrodescendentes,

mas nenhuma pessoa negra de pele escura, por exemplo.

E nenhuma mulher também, que nessa época não votava e nem era votada.

A escravidão, claro, era um assunto na Assembleia.

Tinha deputado que era abertamente contra a escravidão, que defendia a abolição.

E tinha também quem defendia a manutenção do cativeiro, afinal a maioria ali era tudo senhor de escravo.

Teve um deputado mineiro, o Maciel da Costa, que disse que a elite brasileira não tinha culpa pela escravidão.

Olha só isso.

Que os africanos vêm porque seus bárbaros compatriotas os vendem.

Você já ouviu esse tipo de bobagem em algum lugar, né?

Olha só, olha só, se for ver a história realmente, o português nem pisava na África,

eram os próprios negros que entregavam os escravos nos...

Não, pisava, pelo amor de Deus.

Não, não, mas é.

Já o Bonifácio, que também era deputado, preparou um documento enorme para apresentar na Assembleia

defendendo o fim da escravidão.

Ele está preocupado com o progresso econômico do Brasil.

E ele entende que a escravidão é um atraso, que a escravidão, de certa maneira, impossibilita a criação de indústria.

Que a escravidão impossibilita a ocupação do solo de maneira inteligente.

E ele tentou convencer os colegas pelo que era mais importante para eles, o bolso.

Se não abolir, não vai desenvolver, não vai crescer.

São pautas que envolvem o crescimento desse futuro país, desse futuro império,

como qualificar a mão de obra, como criar escolas.

Ele tem uma preocupação enorme com educação, isso é muito importante.

Ele tem uma visão de conjunto, não da escravidão, de como fazer crescer o Brasil.

Escolas técnicas, introdução de imigrantes.

Então, a questão da escravidão está subsunida a um projeto de fazer o Brasil crescer, se industrializar,

se libertar da grande propriedade, sobretudo, se educar.

O Bonifácio escreveu assim.

É preciso, pois, que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que fomentamos entre os selvagens da África.

É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros que morriam abafados

nos porões dos nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda.

É preciso que cessem de uma vez por todas essas mortes e martírios,

sem conta com que flagelávamos e fragelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território.

É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carnisseiro.

É tempo, também, que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós,

para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea,

sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes.

E você vê que, mesmo criticando a barbárie que era a escravidão,

o José Bonifácio não deixava de ser um homem branco e rico do começo do século XIX.

Isso fica evidente, por exemplo, quando ele chama os africanos de selvagens.

Bom, mas esse documento do Bonifácio tinha 32 artigos.

Dá para você ler na íntegra no site do Projeto Quirino.

Só que esse documento nunca foi apresentado na Assembleia.

Em muito pouco tempo aconteceu um monte de coisa.

Primeiro, o Bonifácio foi demitido pelo imperador. Sim, demitido.

Essas ideias reformistas dele não pegavam bem entre a turma do dinheiro.

Mas não era só isso.

Os outros deputados reclamavam que o Bonifácio e os irmãos dele eram muito truculentos.

Tinham até espancado um jornalista português que tinha criticado a família num jornal.

Daí o Dom Pedro rompeu com o ex-braço direito e a família dele virou oposição ao imperador.

E antes que o Bonifácio pudesse levar o documento da escravidão para o plenário,

o Dom Pedro destituiu a Assembleia.

Fechou. Acabou.

Um dos motivos é que os deputados estavam trabalhando num texto que restringia os poderes do imperador

e que dava mais poder para as elites das províncias.

O Dom Pedro não gostou e acabou com a brincadeira.

O Bonifácio foi preso e exilado.

Eu não acho que ele tenha caído por conta da sua luta pela escravidão.

Tanto é que depois no exílio ele jamais se digna lembrar uma vez dessa questão da escravidão.

Eu só lembro também para aqueles que ainda acreditam que ele é o grande patrônio da independência,

que quando ele cai ele funda um jornal e quem vai considerá-lo, em primeiro lugar,

o grande patrônio da independência é ele mesmo.

Porque nesse jornal intitulado Os Tamoios, ele se auto-entrevista e ele então diz

que são os Andradas os responsáveis pela independência do Brasil,

esquecendo que as batalhas foram inúmeras em toda a parte

e que todos os brasileiros participaram de um jeito ou de outro.

Não tinha mais Assembleia para fazer a Constituição, mas o país ainda precisava de leis.

Daí o imperador nomeou uma comissão para escrever a Constituição,

entre eles o Maciel da Costa, aquele mesmo que dizia que a elite brasileira não tinha culpa pela escravidão.

O Maciel não só ajudou a escrever a Constituição, como virou o novo braço direito do Dom Pedro,

entrando no lugar do Bonifácio como ministro.

E a escravidão... Bem, a gente já sabe o que aconteceu com a escravidão.

Se há algo que se manteve depois da atuação de Dom Pedro I e da dissolução,

é justamente esse caráter escravocrata, que é um reflexo do caráter escravocrata da oligarquia brasileira.

Aqui de novo a Inaê Lopes dos Santos.

Essa classe oligárquica brasileira, ela é descendente de proprietários escravizados.

As pessoas não chegaram aqui três dias antes do 7 de setembro, muito pelo contrário.

Fazem parte de famílias que há décadas, talvez séculos, sejam proprietários escravizados.

Então, quando a manutenção da escravidão se dá, e ela se dá por meio do silêncio,

você não tem nenhum instrumento legal dizendo que a escravidão continua.

Não tem nada. O que você tem é o artigo 179 da Carta Constitucional de 1824,

dizendo que todo cidadão brasileiro tem como garantia a propriedade privada.

A escravidão faz parte da propriedade privada e segue o baile.

A Constituição também trazia um outro artigo que ajudaria a manter o sistema escravizado.

Esse artigo era a definição de cidadania.

Pela lei, toda pessoa negra livre, nascida no Brasil, era cidadã do império.

Se fosse um africano, ainda que conquistasse a alforria, não seria um cidadão.

Mas o filho desse africano livre, sim.

E não foi uma benevolência isso, foi mais uma válvula de escape.

Os poderosos davam alguma coisa para não correr o risco de as pessoas botarem a base.

E mesmo para quem conseguia essa cidadania, era uma cidadania de segunda categoria também.

Na teoria, essas pessoas tinham direitos civis, mas não direitos políticos.

Votar e ser votado em todas as eleições.

Essa Constituição é até hoje a mais longeva da história do Brasil.

Durou até 1800 anos.

E a lei, como a Constituição, é a mais longeva da história do Brasil.

Essa Constituição é até hoje a mais longeva da história do Brasil.

Durou até 1889.

E por todo esse período, as pessoas negras que eram livres tiveram essa liberdade precária.

A liberdade, mesmo quando garantida por uma carta de alforria,

ou até mesmo para a população negra que nascia já livre,

como é uma liberdade atrelada a uma escravidão racializada,

significa que ser negro é nunca ter uma liberdade plena.

Então, ser proprietário de escravo é uma das formas inclusive mais efetivas

para você garantir a sua própria liberdade.

Por isso que alguns ex-escravos, quando conseguiam algum dinheiro,

acabavam comprando escravos também.

E dava até para comprar um escravizado a prazo, pagando aos pouquinhos.

Os proprietários de escravos não eram só os grandes proprietários, os grandes senhores.

A escravidão era uma instituição, uma propriedade privada.

Três anos depois, a Câmara dos Deputados voltou a funcionar.

Daí um homem negro fez uma petição para a Câmara.

A Constituição dizia que qualquer cidadão que fosse preso

tinha o direito de saber por que estava preso,

qual que era a acusação contra ele.

E dizia também que se a Constituição estivesse sendo violada,

todo cidadão tinha o direito de apresentar uma petição ao Poder Legislativo.

E foi isso que esse homem negro fez.

O nome dele era Delfino. Não se sabe o sobrenome dele.

O caso foi revelado pelas historiadoras Adriana Pereira Campos e Katia Sausen da Mota.

Na petição, o advogado argumentou que o Delfino já estava preso há dois meses, sem acusação.

Ele não estava sendo acusado de nenhum crime, mas continuava preso.

O advogado escreveu assim

O suplicante, como liberto, é um cidadão,

que como tal não pode ser preso e muito menos continuar a existir em prisão.

Ou seja, o Delfino, como homem negro livre nascido no Brasil,

estava tentando simplesmente exercer o direito dele como cidadão.

Como eu trabalho diferente, mas eu fazia meus biscatezinho também,

às vezes eu fui lá nele para ver se ele tinha uma vaga lá de biscate,

para fazer um biscate, para ganhar um qualquer por fora que já julgava.

Só que quando eu cheguei lá foi que os policiais vêm.

Só que o Delfino continuou preso.

A história era assim. O Delfino era escravizado por um sujeito rico lá, que morreu.

E os herdeiros começaram uma briga pelo espólio.

Daí o filho desse sujeito vendeu o Delfino,

mas um cunhado chegou dizendo que ele é que era o herdeiro e portanto dono do Delfino

e prendeu o Delfino.

Daí o cara que tinha comprado ele falou,

quer saber, agora não é meu nem seu, agora ele é livre.

E libertou o Delfino.

Mas o juiz decidiu que enquanto não tivesse uma palavra final sobre o espólio,

o Delfino deveria continuar preso, mesmo sem ter cometido nenhum crime.

Sabe a presunção de inocência?

Todo mundo é inocente até que se prove o contrário.

Na teoria deveria ser assim.

A presunção, nesse caso do Delfino, não era de liberdade, era de escravidão.

Antes de poder ter qualquer direito de cidadão,

ele primeiro tinha que provar que não era escravizado.

Aí foi sentou, me colocou sentado lá, começaram a tirar um montão de foto,

um montão de gente olhando, e eu perguntando a eles o que que era.

Aí foi e falou, cá que vai se canjuzindo só na gregacia mesmo e vai embora pra casa.

Eu pergunto pra quem é isso, pra quê que eu ia ir na gregacia,

que eu não devia nada à justiça.

Eu falei pro ex, o ex não, que vai quem que ia.

O Delfino foi preso em maio de 26 e fez essa petição pra Câmara em julho.

Só em maio do ano seguinte é que foi lido em plenário um parecer da comissão que analisou o caso

e eles deram razão pro juiz.

Aí quando chegou lá, a gregaria só vem falando que eu era safado mesmo.

Eu falando com ela que eu era trabalhador, ela foi e falou, já cranca ele lá pra guenca mesmo.

Aí crancou, ali eu fiquei crancado.

Esse parecer da comissão é a última notícia que se tem do Delfino.

Não se sabe se ele ainda estava preso, nem o que que aconteceu com ele depois disso.

E ali eu não via nem dia, nem noite, nem nada, e ninguém não me falando nada.

Eu pedindo explicação, gricando lá.

Eles falaram que era pra calar a boca, senão ia ficar ruim pra mim.

Será que ele foi enfim libertado? Será que continuou na prisão?

Que porcaria de cidadania é essa em que uma pessoa pode ficar tanto tempo presa,

mesmo sem ter cometido crime nenhum?

Aí fiquei lá mais sete dias nessa cela, aí foi que ancrou pro presídio, que era o convívio.

Aí lá o polícia ainda falou, se eu não conheço, que eu vou conhecer o inferno.

Essa voz que você tá ouvindo esse tempo todo é a do Anderson Gonçalves.

Em 2019 ele estava indo atrás de uma vaga de emprego quando foi abordado por policiais.

Tudo isso no centro de Petrópolis, aquela cidade que paga até hoje laudêmio para os descendentes do Dom Pedro.

Os policiais não explicaram nada pro Anderson.

Levaram ele pra delegacia e deixaram ele lá.

Não podia falar com a esposa, não tinha advogado.

Sem que ele soubesse, estava na delegacia também um homem que tinha sido assaltado um mês antes.

O homem disse que não tinha dado pra ver direito o ladrão, mas que era um homem negro e que tinha uma cicatriz no rosto.

Os policiais levaram a vítima pra uma sala olhando pra um vidro.

Do outro lado do vidro, olhando pro espelho, estava o Anderson ao lado de dois homens.

E ficava olhando um pauco e rindo, assim né.

E eu olhando pro espelho e rindo.

Larga a minha cara, assim, eu sério olhando pro espelho.

Só que bocou em reconhecimento, só que como eu não entendo, nem eu sabia que era reconhecimento.

Pra mim ficava normal ali.

A vítima reconheceu o Anderson.

Ele foi denunciado pelo Ministério Público com base nesse reconhecimento e o juiz aceitou a denúncia.

E falei com ele, não, não cometi nada disso não.

Aí foi nisso, aí fiquei.

Aí fui ficando preso, foi passando meses e meses eu lá.

Aí fiquei um ano e três meses preso sem saber de nada.

Assim, procurando uma julga lá dentro, ninguém dava atenção, nada.

Que lá na verdade nós fica crackado igual um bicho mesmo.

Quem já ia comer gasega e crano, não dava pra comer direito, que eu não ia comer comida gasega.

Às vezes até comia, mas gasega eu não ia ficar comendo aquilo.

Olha, Tiago, eu vou completar 27 anos de defensoria pública.

E é uma das maiores injustiças que eu já vi até hoje.

Porque aqui nós temos o racismo estrutural efetivamente configurado.

Por parte da Polícia Civil, investigação.

Por parte do Ministério Público, acusação.

E por parte do Judiciário, julgador.

Este é o Marcinho, um dos mais importantes do Brasil.

Ele foi catado na rua, você é o autor do crime e está preso, sem mandato.

E foi colocado para reconhecimento perante dois homens brancos.

Ah é, faltou dizer isso.

Lembra que a vítima disse que não tinha dado pra ver direito o assaltante, mas que era um homem negro?

Na hora de fazer o reconhecimento na delegacia, os policiais colocaram três pessoas pra vítima reconhecer.

Uma, que estava na rua, e a outra, que estava na rua, e a outra, que estava na rua.

Na hora de fazer o reconhecimento na delegacia, os policiais colocaram três pessoas pra vítima reconhecer.

O Anderson, que é um homem negro, e dois homens brancos.

E a vítima acabou reconhecendo o Anderson, num processo de indução.

Mas esse não foi o único erro do caso.

Anderson só foi levado à autoridade judicial seis meses depois do primeiro dia de encarceramento.

Quando é obrigatória a audiência de custódia.

O Anderson não teve audiência de custódia.

Ele não sabia do que estava sendo acusado.

Ele não teve direito à defesa.

E o Anderson só foi solto 15 meses depois.

15 meses.

Porque quando enfim teve uma audiência, e aqui eu vou usar aspas, da decisão que finalmente libertou o Anderson.

A vítima não identificou no acusado a principal característica física que observou no autor do delito.

Ou seja, uma cicatriz no rosto.

Anderson, você entrevistou? Anderson, não tem cicatriz.

15 meses preso. 15 meses.

Quem devolve esse tempo pra ele? Pra esposa dele?

Me prejudicou em cura, porque eu era muito esforçado.

Eu tinha ali a banquinha, ela ali. Quando apareciam os biscate, eu ia, já fazia.

Aí quando eu fiquei lá, me prejudicou, porque foi como roubo.

E cão roubo pra minha cara na casa de uma pessoa, hoje ela vai desconfiar.

Mesmo provando que cão perdi cangue dos biscate, hoje eu vivo de remédio controlado.

E se eu não beber remédio, eu fico nervoso, me enganço, né?

Fico pensando só na cagueia, que pensa, se passa igual um filme, é difícil de sair.

15 meses preso pelo crime de nascer preto no Brasil.

Que porcaria de cidadania é essa em que uma pessoa pode ficar tanto tempo presa,

mesmo sem ter cometido crime nenhum?

200 anos separam a história do Delfino da história do Anderson.

Pro Delfino, a presunção era a de escravidão.

Pro Anderson, de culpa, de criminalidade.

Do tipo, todo negro é criminoso até que consiga provar o contrário.

200 anos depois daquela primeira constituição, o negro ainda é um cidadão de segunda categoria no Brasil.

E o que você pensa do futuro, Anderson? O que você tem vontade de fazer?

Quando você sonha, o que você sonha?

O meu sonho ainda continua o mesmo, que é abrir lá minha quicandinha de legumes, verduras.

Abrir uma lochonetezinha depois também, para que nós vendemos os bolinhos, nós saibamos fazer.

E continuar, diga assim, trabalhando, né?

Quero me recuperar, tomando esses remédios.

Eu sei que um dia eu vou chegar lá, mesmo que queira tirar esse sonho, mas não tira.

Porque eu ainda tenho isso na mente e eu vou fazer, vou lucrar, quero conseguir.

Este foi só o primeiro episódio do podcast do Projeto Quirino.

A gente começou pela Independência, mas nos próximos episódios vamos tratar de outros momentos da história do Brasil e do Brasil atual.

O Projeto Quirino é inspirado no Sixteen Nineteen, lançado em 2019 pelo jornal The New York Times e liderado pela jornalista Nicole Hannah Jones.

Aqui no nosso projeto tem uma frase do fotógrafo e ativista Januário Garcia, que está guiando essa jornada.

O Januário nos deixou em 2021 e ele dizia assim,

Existe uma história do negro sem o Brasil.

O que não existe é uma história do Brasil sem o negro.

O Projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibirapitanga.

O podcast é produzido pela Rádio Novilo.

O nosso site projetoquirino.com.br reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

E eu te convido a conferir também todo o material do Projeto Quirino que está sendo publicado pela revista Piauí,

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio, Rafael Domingos Oliveira e Angélica Paulo, que também fez a produção.

A edição é do Luca Mendes, a sonorização da Julia Matos e a finalização da Pipoca Sound.

A checagem é do Gilberto Porcidônio e a música original do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital,

O ator que gentilmente leu aquele trecho da representação do Bonifácio foi o Paulo Betti.

Os transcritores das entrevistas foram Guilherme Póvoas e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound com trabalhos técnicos do João Muniz.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe e Paula Escarpino.

A produção foi realizada por Mariana Jaspe e o Rodolfo Viana.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe, Paula Escarpino e Flora Thompson Devoe, com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ISPIS, Instituto Sincronicidade para Interação Social.

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação, Thiago Rogero.

Este episódio usou áudios de TV Cultura, TV Record, Jovem Pan News.

O Instituto Ibiraputanga é uma organização doadora fundada em 2017 pelo cineasta Walter Salles,

dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil.

O Ibiraputanga apoia organizações, movimentos e coletivos da sociedade civil brasileira

que desejam produzir transformações estruturais positivas no país

nas áreas de equidade racial e sistemas alimentares.

Até o próximo!


1. A grande aposta - Part 2 1. Die große Wette - Teil 2 1. The Big Bet - Part 2 1.大きな賭け - パート2 1. De grote gok - Deel 2 1. 大賭注 - 第 2 部分

O racismo é uma construção humana e a escravidão também.

A escravidão é uma instituição.

E ela perdurou porque você tinha um grupo de senhores escravizados,

que era um grupo que também formou a elite política brasileira,

ou as elites políticas brasileiras,

na sua multiplicidade, nas suas discordas,

na sua construção de um sistema de direitos,

na sua construção de um sistema de direitos.

E aí, a gente tem um grupo de senhores escravizados,

que é um grupo que também formou a elite política brasileira,

na sua multiplicidade, nas suas discordâncias,

elas tinham essa base comum,

que era o fato de eles serem proprietários de escravizados.

Em dezembro de 1922, foram criados os símbolos nacionais,

como a bandeira do Império.

Você já olhou bem para a bandeira do Império?

Ela tem o mesmo retângulo verde da bandeira de hoje,

representando a casa de Bragança, que é a família do Dom Pedro.

O losango amarelo representa a casa da família da Maria Leopoldina.

Tem a cruz da Ordem de Cristo,

tem umas estrelas representando as províncias e tem a coroa.

Acima da coroa, ainda tem mais uma cruz,

simbolizando que Deus estava acima de tudo.

Mas, além de tudo isso, tem dois raminhos de folha,

que ninguém costuma reparar.

Esses dois ramos emolduram o brasão.

De um lado, um ramo de café, do outro, um ramo de tabaco.

Eles estão unidos pelo laço da nação, uma fitinha verde e amarela.

E o Dom Pedro disse que a ideia era que esses ramos representassem

as riquezas da nação, café e tabaco.

Daí eu te pergunto, quem trabalhava e colhia,

quem trabalhava e morria, para gerar essas duas riquezas nacionais?

A Avenida Paulista, principal palco das manifestações em São Paulo,

além de receber manifestantes em defesa das reformas do governo Jair Bolsonaro,

abriu espaço para a defesa de outras pautas mais alternativas,

entre elas, a defesa da monarquia.

Há pouco tempo atrás, nós éramos milhões, mas milhões silenciosos.

Agora nós já estamos na rua, no Brasil todo.

As pessoas já veem a bandeira do Império e falam,

olha, monarquia, monarquia.

Agora, seria errado dizer que não teve guerra na Independência no Brasil.

Teve guerra, teve sangue derramado, só que não foi sangue azul.

As guerras de Independência foram guerras que aconteceram em diferentes partes do país

e que tiveram, obviamente, dimensões distintas,

nas quais as forças militares desse recém-criado país,

com uma ajuda fundamental da população agora brasileira,

lutam pela expulsão das tropas portuguesas.

E são movimentos que têm um apelo popular muito grande.

E o apelo popular não é que as pessoas ficavam na janela das suas casas batendo palma.

O apelo popular é porque as pessoas vão para as ruas com faca,

com que elas estivessem, porque a gente não está falando de um exército organizado ainda.

A mais conhecida dessas guerras, e a que teve maior repercussão, foi na Bahia.

Por meio de um movimento que tem uma participação popular significativa,

em que a gente tem, pelo menos, a participação de três mulheres que ganharam,

em escalas diferentes, por causa das suas pertencências raciais,

um destaque na história brasileira.

Uma dessas mulheres é a Maria Filipa, né?

Sim, que é a mulher negra que a gente conhece de forma mais emblemática

nesse período da história do Brasil.

Primeiro, se apresenta, por favor, para o ouvinte,

seu nome completo e como você se descreve.

Bem, eu sou Valdíria Lopes, eu sou pedagoga,

especialista em metodologia dos sinos africanos e afro-brasileiros.

A guerra da independência na Bahia começou em fevereiro de 1922.

Primeiro, um português foi nomeado pelas cortes para ser governador de armas da Bahia.

A população protestou. A Bahia estava num barril de pólvora.

Daí, os soldados portugueses atacaram os militares brasileiros.

Maria Filipa, para mim, ela representa os negros e negras que perderam a vida,

que foram invisibilizados por séculos.

E aí você não vê na história, nos livros, falando desses corpos que foram jogados.

E Maria Filipa, para mim, representa a presença do negro

na luta da independência do Brasil na Bahia.

A linha de frente da resistência brasileira era formada por pessoas negras,

as chamadas tropas de cor.

Enquanto os negros resistiam em Salvador, a turma rica e branca fugiu para suas fazendas no Recôncavo.

O Dom Pedro contratou um mercenário francês, o Pierre Labatute, para liderar as tropas brasileiras.

Aqui em Taparica foi onde houve mais sangue derramado na luta da independência.

Taparica é um lugar singular quando fala das consequências das lutas pela independência.

Mas muito poucas pessoas sabem disso e isso é muito pouco falado.

Na ilha de Taparica, que fica na Bahia de Todos os Santos,

a Maria Filipa de Oliveira, uma mulher negra, pescadora, marisqueira e quitandeira,

teria liderado um grupo que incendiou barcos dos portugueses.

E as mulheres lideradas por ela também teriam dado uma surra de cansanção.

Sabe cansanção? É uma planta que dá queimadura se você encostar.

Elas teriam dado uma surra de cansanção nos portugueses.

Eu estou colocando esse tanto de teria porque não tem muito documento atestando todos esses feitos dela.

Mas a gente sabe como que o Brasil trata documento,

especialmente se for um documento envolvendo o protagonismo de uma mulher e de uma mulher negra 200 anos atrás.

E no fim das contas, o que importa mesmo é o que a Maria Filipa significa.

Muitos negros foram lutar pela sua independência, né?

A gente sabe disso, mas a história não conta.

Maria Filipa é um elemento pedagógico, didático, que faz com que a gente construa esse discurso que não foi escrito.

A gente ainda sofre muito preconceito porque a maioria dos acadêmicos diz que é um mito, que ela não existiu.

Mas a gente entende que a história, ela é fojada com as memórias.

Eu me sinto contemplada em vez de heroína.

Eu não sou heroína. Para mim, eu não preciso que acadêmico nenhum ache importante.

Ela é o negro na luta pela independência.

Ela tira a gente da invisibilidade dos livros didáticos, do livro de história.

Essa mulher é muito forte.

A guerra da independência só terminou de fato em julho de 1923,

quando os soldados portugueses partiram de volta para a terrinha.

Foi num 2 de julho e por isso que a data até hoje é tão celebrada na Bahia.

É preciso a constituição de uma frota para abafar a guerra na Bahia,

que é onde foi feita a independência, é bom que se diga, com sangue,

e com sangue de escravos, e com sangue de afromexistas e afro-brasileiros que queriam a independência.

Esta é a mérida e o priori.

Então você vê que teve guerra e que teve morte.

Teve independência ou morte.

Só que quem morreu era preto e pobre.

A essa altura, o Dom Pedro já tinha sido coroado,

mas ele não quis ser rei, ele quis ser imperador do Brasil.

A autoestima do homem hétero branco é imbatível.

Para criar a Marinha de Guerra brasileira, o Bonifácio pediu ajuda para a Inglaterra,

e os ingleses, que continuaram como grandes parceiros comerciais do Brasil,

seguiram pressionando também pelo fim do tráfico negreiro.

Daí, para convencer a Inglaterra, o Bonifácio disse para eles que reprovava o tráfico

e que só não interrompia porque isso podia ameaçar a existência do novo governo.

Mas que em dois ou três anos, o mal, e foi assim que ele chamou, o mal teria fim.

O Bonifácio chegou a dizer que sabia que o preço a pagar pela unidade do império era a escravidão.

Um preço que gerações e gerações de pessoas não tinham.

Um preço que gerações e gerações de pessoas negras, as que conseguiram sobreviver, estão pagando até hoje.

Bom, todo país novo precisa de leis, precisa de uma constituição.

Em maio de 23, foi instaurada a Assembleia Nacional Constituinte.

Os parlamentares eram quase todos homens brancos, ricos, alguns poucos afrodescendentes,

mas nenhuma pessoa negra de pele escura, por exemplo.

E nenhuma mulher também, que nessa época não votava e nem era votada.

A escravidão, claro, era um assunto na Assembleia.

Tinha deputado que era abertamente contra a escravidão, que defendia a abolição.

E tinha também quem defendia a manutenção do cativeiro, afinal a maioria ali era tudo senhor de escravo.

Teve um deputado mineiro, o Maciel da Costa, que disse que a elite brasileira não tinha culpa pela escravidão.

Olha só isso.

Que os africanos vêm porque seus bárbaros compatriotas os vendem.

Você já ouviu esse tipo de bobagem em algum lugar, né?

Olha só, olha só, se for ver a história realmente, o português nem pisava na África,

eram os próprios negros que entregavam os escravos nos...

Não, pisava, pelo amor de Deus.

Não, não, mas é.

Já o Bonifácio, que também era deputado, preparou um documento enorme para apresentar na Assembleia

defendendo o fim da escravidão.

Ele está preocupado com o progresso econômico do Brasil.

E ele entende que a escravidão é um atraso, que a escravidão, de certa maneira, impossibilita a criação de indústria.

Que a escravidão impossibilita a ocupação do solo de maneira inteligente.

E ele tentou convencer os colegas pelo que era mais importante para eles, o bolso.

Se não abolir, não vai desenvolver, não vai crescer.

São pautas que envolvem o crescimento desse futuro país, desse futuro império,

como qualificar a mão de obra, como criar escolas.

Ele tem uma preocupação enorme com educação, isso é muito importante.

Ele tem uma visão de conjunto, não da escravidão, de como fazer crescer o Brasil.

Escolas técnicas, introdução de imigrantes.

Então, a questão da escravidão está subsunida a um projeto de fazer o Brasil crescer, se industrializar,

se libertar da grande propriedade, sobretudo, se educar.

O Bonifácio escreveu assim.

É preciso, pois, que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que fomentamos entre os selvagens da África.

É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros que morriam abafados

nos porões dos nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda.

É preciso que cessem de uma vez por todas essas mortes e martírios,

sem conta com que flagelávamos e fragelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território.

É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carnisseiro.

É tempo, também, que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós,

para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea,

sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes.

E você vê que, mesmo criticando a barbárie que era a escravidão,

o José Bonifácio não deixava de ser um homem branco e rico do começo do século XIX.

Isso fica evidente, por exemplo, quando ele chama os africanos de selvagens.

Bom, mas esse documento do Bonifácio tinha 32 artigos.

Dá para você ler na íntegra no site do Projeto Quirino.

Só que esse documento nunca foi apresentado na Assembleia.

Em muito pouco tempo aconteceu um monte de coisa.

Primeiro, o Bonifácio foi demitido pelo imperador. Sim, demitido.

Essas ideias reformistas dele não pegavam bem entre a turma do dinheiro.

Mas não era só isso.

Os outros deputados reclamavam que o Bonifácio e os irmãos dele eram muito truculentos.

Tinham até espancado um jornalista português que tinha criticado a família num jornal.

Daí o Dom Pedro rompeu com o ex-braço direito e a família dele virou oposição ao imperador.

E antes que o Bonifácio pudesse levar o documento da escravidão para o plenário,

o Dom Pedro destituiu a Assembleia.

Fechou. Acabou.

Um dos motivos é que os deputados estavam trabalhando num texto que restringia os poderes do imperador

e que dava mais poder para as elites das províncias.

O Dom Pedro não gostou e acabou com a brincadeira.

O Bonifácio foi preso e exilado.

Eu não acho que ele tenha caído por conta da sua luta pela escravidão.

Tanto é que depois no exílio ele jamais se digna lembrar uma vez dessa questão da escravidão.

Eu só lembro também para aqueles que ainda acreditam que ele é o grande patrônio da independência,

que quando ele cai ele funda um jornal e quem vai considerá-lo, em primeiro lugar,

o grande patrônio da independência é ele mesmo.

Porque nesse jornal intitulado Os Tamoios, ele se auto-entrevista e ele então diz

que são os Andradas os responsáveis pela independência do Brasil,

esquecendo que as batalhas foram inúmeras em toda a parte

e que todos os brasileiros participaram de um jeito ou de outro.

Não tinha mais Assembleia para fazer a Constituição, mas o país ainda precisava de leis.

Daí o imperador nomeou uma comissão para escrever a Constituição,

entre eles o Maciel da Costa, aquele mesmo que dizia que a elite brasileira não tinha culpa pela escravidão.

O Maciel não só ajudou a escrever a Constituição, como virou o novo braço direito do Dom Pedro,

entrando no lugar do Bonifácio como ministro.

E a escravidão... Bem, a gente já sabe o que aconteceu com a escravidão.

Se há algo que se manteve depois da atuação de Dom Pedro I e da dissolução,

é justamente esse caráter escravocrata, que é um reflexo do caráter escravocrata da oligarquia brasileira.

Aqui de novo a Inaê Lopes dos Santos.

Essa classe oligárquica brasileira, ela é descendente de proprietários escravizados.

As pessoas não chegaram aqui três dias antes do 7 de setembro, muito pelo contrário.

Fazem parte de famílias que há décadas, talvez séculos, sejam proprietários escravizados.

Então, quando a manutenção da escravidão se dá, e ela se dá por meio do silêncio,

você não tem nenhum instrumento legal dizendo que a escravidão continua.

Não tem nada. O que você tem é o artigo 179 da Carta Constitucional de 1824,

dizendo que todo cidadão brasileiro tem como garantia a propriedade privada.

A escravidão faz parte da propriedade privada e segue o baile.

A Constituição também trazia um outro artigo que ajudaria a manter o sistema escravizado.

Esse artigo era a definição de cidadania.

Pela lei, toda pessoa negra livre, nascida no Brasil, era cidadã do império.

Se fosse um africano, ainda que conquistasse a alforria, não seria um cidadão.

Mas o filho desse africano livre, sim.

E não foi uma benevolência isso, foi mais uma válvula de escape.

Os poderosos davam alguma coisa para não correr o risco de as pessoas botarem a base.

E mesmo para quem conseguia essa cidadania, era uma cidadania de segunda categoria também.

Na teoria, essas pessoas tinham direitos civis, mas não direitos políticos.

Votar e ser votado em todas as eleições.

Essa Constituição é até hoje a mais longeva da história do Brasil.

Durou até 1800 anos.

E a lei, como a Constituição, é a mais longeva da história do Brasil.

Essa Constituição é até hoje a mais longeva da história do Brasil.

Durou até 1889.

E por todo esse período, as pessoas negras que eram livres tiveram essa liberdade precária.

A liberdade, mesmo quando garantida por uma carta de alforria,

ou até mesmo para a população negra que nascia já livre,

como é uma liberdade atrelada a uma escravidão racializada,

significa que ser negro é nunca ter uma liberdade plena.

Então, ser proprietário de escravo é uma das formas inclusive mais efetivas

para você garantir a sua própria liberdade.

Por isso que alguns ex-escravos, quando conseguiam algum dinheiro,

acabavam comprando escravos também.

E dava até para comprar um escravizado a prazo, pagando aos pouquinhos.

Os proprietários de escravos não eram só os grandes proprietários, os grandes senhores.

A escravidão era uma instituição, uma propriedade privada.

Três anos depois, a Câmara dos Deputados voltou a funcionar.

Daí um homem negro fez uma petição para a Câmara.

A Constituição dizia que qualquer cidadão que fosse preso

tinha o direito de saber por que estava preso,

qual que era a acusação contra ele.

E dizia também que se a Constituição estivesse sendo violada,

todo cidadão tinha o direito de apresentar uma petição ao Poder Legislativo.

E foi isso que esse homem negro fez.

O nome dele era Delfino. Não se sabe o sobrenome dele.

O caso foi revelado pelas historiadoras Adriana Pereira Campos e Katia Sausen da Mota.

Na petição, o advogado argumentou que o Delfino já estava preso há dois meses, sem acusação.

Ele não estava sendo acusado de nenhum crime, mas continuava preso.

O advogado escreveu assim

O suplicante, como liberto, é um cidadão,

que como tal não pode ser preso e muito menos continuar a existir em prisão.

Ou seja, o Delfino, como homem negro livre nascido no Brasil,

estava tentando simplesmente exercer o direito dele como cidadão.

Como eu trabalho diferente, mas eu fazia meus biscatezinho também,

às vezes eu fui lá nele para ver se ele tinha uma vaga lá de biscate,

para fazer um biscate, para ganhar um qualquer por fora que já julgava.

Só que quando eu cheguei lá foi que os policiais vêm.

Só que o Delfino continuou preso.

A história era assim. O Delfino era escravizado por um sujeito rico lá, que morreu.

E os herdeiros começaram uma briga pelo espólio.

Daí o filho desse sujeito vendeu o Delfino,

mas um cunhado chegou dizendo que ele é que era o herdeiro e portanto dono do Delfino

e prendeu o Delfino.

Daí o cara que tinha comprado ele falou,

quer saber, agora não é meu nem seu, agora ele é livre.

E libertou o Delfino.

Mas o juiz decidiu que enquanto não tivesse uma palavra final sobre o espólio,

o Delfino deveria continuar preso, mesmo sem ter cometido nenhum crime.

Sabe a presunção de inocência?

Todo mundo é inocente até que se prove o contrário.

Na teoria deveria ser assim.

A presunção, nesse caso do Delfino, não era de liberdade, era de escravidão.

Antes de poder ter qualquer direito de cidadão,

ele primeiro tinha que provar que não era escravizado.

Aí foi sentou, me colocou sentado lá, começaram a tirar um montão de foto,

um montão de gente olhando, e eu perguntando a eles o que que era.

Aí foi e falou, cá que vai se canjuzindo só na gregacia mesmo e vai embora pra casa.

Eu pergunto pra quem é isso, pra quê que eu ia ir na gregacia,

que eu não devia nada à justiça.

Eu falei pro ex, o ex não, que vai quem que ia.

O Delfino foi preso em maio de 26 e fez essa petição pra Câmara em julho.

Só em maio do ano seguinte é que foi lido em plenário um parecer da comissão que analisou o caso

e eles deram razão pro juiz.

Aí quando chegou lá, a gregaria só vem falando que eu era safado mesmo.

Eu falando com ela que eu era trabalhador, ela foi e falou, já cranca ele lá pra guenca mesmo.

Aí crancou, ali eu fiquei crancado.

Esse parecer da comissão é a última notícia que se tem do Delfino.

Não se sabe se ele ainda estava preso, nem o que que aconteceu com ele depois disso.

E ali eu não via nem dia, nem noite, nem nada, e ninguém não me falando nada.

Eu pedindo explicação, gricando lá.

Eles falaram que era pra calar a boca, senão ia ficar ruim pra mim.

Será que ele foi enfim libertado? Será que continuou na prisão?

Que porcaria de cidadania é essa em que uma pessoa pode ficar tanto tempo presa,

mesmo sem ter cometido crime nenhum?

Aí fiquei lá mais sete dias nessa cela, aí foi que ancrou pro presídio, que era o convívio.

Aí lá o polícia ainda falou, se eu não conheço, que eu vou conhecer o inferno.

Essa voz que você tá ouvindo esse tempo todo é a do Anderson Gonçalves.

Em 2019 ele estava indo atrás de uma vaga de emprego quando foi abordado por policiais.

Tudo isso no centro de Petrópolis, aquela cidade que paga até hoje laudêmio para os descendentes do Dom Pedro.

Os policiais não explicaram nada pro Anderson.

Levaram ele pra delegacia e deixaram ele lá.

Não podia falar com a esposa, não tinha advogado.

Sem que ele soubesse, estava na delegacia também um homem que tinha sido assaltado um mês antes.

O homem disse que não tinha dado pra ver direito o ladrão, mas que era um homem negro e que tinha uma cicatriz no rosto.

Os policiais levaram a vítima pra uma sala olhando pra um vidro.

Do outro lado do vidro, olhando pro espelho, estava o Anderson ao lado de dois homens.

E ficava olhando um pauco e rindo, assim né.

E eu olhando pro espelho e rindo.

Larga a minha cara, assim, eu sério olhando pro espelho.

Só que bocou em reconhecimento, só que como eu não entendo, nem eu sabia que era reconhecimento.

Pra mim ficava normal ali.

A vítima reconheceu o Anderson.

Ele foi denunciado pelo Ministério Público com base nesse reconhecimento e o juiz aceitou a denúncia.

E falei com ele, não, não cometi nada disso não.

Aí foi nisso, aí fiquei.

Aí fui ficando preso, foi passando meses e meses eu lá.

Aí fiquei um ano e três meses preso sem saber de nada.

Assim, procurando uma julga lá dentro, ninguém dava atenção, nada.

Que lá na verdade nós fica crackado igual um bicho mesmo.

Quem já ia comer gasega e crano, não dava pra comer direito, que eu não ia comer comida gasega.

Às vezes até comia, mas gasega eu não ia ficar comendo aquilo.

Olha, Tiago, eu vou completar 27 anos de defensoria pública.

E é uma das maiores injustiças que eu já vi até hoje.

Porque aqui nós temos o racismo estrutural efetivamente configurado.

Por parte da Polícia Civil, investigação.

Por parte do Ministério Público, acusação.

E por parte do Judiciário, julgador.

Este é o Marcinho, um dos mais importantes do Brasil.

Ele foi catado na rua, você é o autor do crime e está preso, sem mandato.

E foi colocado para reconhecimento perante dois homens brancos.

Ah é, faltou dizer isso.

Lembra que a vítima disse que não tinha dado pra ver direito o assaltante, mas que era um homem negro?

Na hora de fazer o reconhecimento na delegacia, os policiais colocaram três pessoas pra vítima reconhecer.

Uma, que estava na rua, e a outra, que estava na rua, e a outra, que estava na rua.

Na hora de fazer o reconhecimento na delegacia, os policiais colocaram três pessoas pra vítima reconhecer.

O Anderson, que é um homem negro, e dois homens brancos.

E a vítima acabou reconhecendo o Anderson, num processo de indução.

Mas esse não foi o único erro do caso.

Anderson só foi levado à autoridade judicial seis meses depois do primeiro dia de encarceramento.

Quando é obrigatória a audiência de custódia.

O Anderson não teve audiência de custódia.

Ele não sabia do que estava sendo acusado.

Ele não teve direito à defesa.

E o Anderson só foi solto 15 meses depois.

15 meses.

Porque quando enfim teve uma audiência, e aqui eu vou usar aspas, da decisão que finalmente libertou o Anderson.

A vítima não identificou no acusado a principal característica física que observou no autor do delito.

Ou seja, uma cicatriz no rosto.

Anderson, você entrevistou? Anderson, não tem cicatriz.

15 meses preso. 15 meses.

Quem devolve esse tempo pra ele? Pra esposa dele?

Me prejudicou em cura, porque eu era muito esforçado.

Eu tinha ali a banquinha, ela ali. Quando apareciam os biscate, eu ia, já fazia.

Aí quando eu fiquei lá, me prejudicou, porque foi como roubo.

E cão roubo pra minha cara na casa de uma pessoa, hoje ela vai desconfiar.

Mesmo provando que cão perdi cangue dos biscate, hoje eu vivo de remédio controlado.

E se eu não beber remédio, eu fico nervoso, me enganço, né?

Fico pensando só na cagueia, que pensa, se passa igual um filme, é difícil de sair.

15 meses preso pelo crime de nascer preto no Brasil.

Que porcaria de cidadania é essa em que uma pessoa pode ficar tanto tempo presa,

mesmo sem ter cometido crime nenhum?

200 anos separam a história do Delfino da história do Anderson.

Pro Delfino, a presunção era a de escravidão.

Pro Anderson, de culpa, de criminalidade.

Do tipo, todo negro é criminoso até que consiga provar o contrário.

200 anos depois daquela primeira constituição, o negro ainda é um cidadão de segunda categoria no Brasil.

E o que você pensa do futuro, Anderson? O que você tem vontade de fazer?

Quando você sonha, o que você sonha?

O meu sonho ainda continua o mesmo, que é abrir lá minha quicandinha de legumes, verduras.

Abrir uma lochonetezinha depois também, para que nós vendemos os bolinhos, nós saibamos fazer.

E continuar, diga assim, trabalhando, né?

Quero me recuperar, tomando esses remédios.

Eu sei que um dia eu vou chegar lá, mesmo que queira tirar esse sonho, mas não tira.

Porque eu ainda tenho isso na mente e eu vou fazer, vou lucrar, quero conseguir.

Este foi só o primeiro episódio do podcast do Projeto Quirino.

A gente começou pela Independência, mas nos próximos episódios vamos tratar de outros momentos da história do Brasil e do Brasil atual.

O Projeto Quirino é inspirado no Sixteen Nineteen, lançado em 2019 pelo jornal The New York Times e liderado pela jornalista Nicole Hannah Jones.

Aqui no nosso projeto tem uma frase do fotógrafo e ativista Januário Garcia, que está guiando essa jornada.

O Januário nos deixou em 2021 e ele dizia assim,

Existe uma história do negro sem o Brasil.

O que não existe é uma história do Brasil sem o negro.

O Projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibirapitanga.

O podcast é produzido pela Rádio Novilo.

O nosso site projetoquirino.com.br reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

E eu te convido a conferir também todo o material do Projeto Quirino que está sendo publicado pela revista Piauí,

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio, Rafael Domingos Oliveira e Angélica Paulo, que também fez a produção.

A edição é do Luca Mendes, a sonorização da Julia Matos e a finalização da Pipoca Sound.

A checagem é do Gilberto Porcidônio e a música original do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital,

O ator que gentilmente leu aquele trecho da representação do Bonifácio foi o Paulo Betti.

Os transcritores das entrevistas foram Guilherme Póvoas e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound com trabalhos técnicos do João Muniz.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe e Paula Escarpino.

A produção foi realizada por Mariana Jaspe e o Rodolfo Viana.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe, Paula Escarpino e Flora Thompson Devoe, com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ISPIS, Instituto Sincronicidade para Interação Social.

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação, Thiago Rogero.

Este episódio usou áudios de TV Cultura, TV Record, Jovem Pan News.

O Instituto Ibiraputanga é uma organização doadora fundada em 2017 pelo cineasta Walter Salles,

dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil.

O Ibiraputanga apoia organizações, movimentos e coletivos da sociedade civil brasileira

que desejam produzir transformações estruturais positivas no país

nas áreas de equidade racial e sistemas alimentares.

Até o próximo!