×

We use cookies to help make LingQ better. By visiting the site, you agree to our cookie policy.


image

Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 1. A grande aposta - Part 1

1. A grande aposta - Part 1

O que é isso, mané?

Ih, mané, esse fogo tá indo até lá em cima, mané.

Ih, vai apagar.

Olha isso, cara.

Já chegou muito carro de bombeiro, a guarda municipal já tá presente, e o fogo tá se

abastecendo muito rápido.

E atenção, uma notícia que acaba de chegar.

O incêndio de grandes proporções está destruindo, nesse momento, o Museu Nacional no Rio de

Janeiro.

Olha, a cena é muito triste.

A gente vê daqui todo o museu sendo destruído pelo fogo.

Esse incêndio começou por volta de umas sete e meia da noite.

Segundo a assessoria, existia um parque vigilante.

O incêndio no Museu Nacional foi numa madrugada de domingo pra segunda, em setembro de 2018.

Foram mais de seis horas de fogo e mais de 80% do acervo se perdeu.

Quase tudo que tava lá dentro.

A estrutura externa ficou, as paredes, a fachada.

E eu tô olhando pro prédio do museu agora, do lado de fora.

Fica na Quinta da Boa Vista, que é um parque em São Cristóvão, bairro da Zona Norte

do Rio de Janeiro.

Acho que esse dia do incêndio ainda tá muito vivo na mente das pessoas.

Pra quase todo mundo, talvez seja essa a imagem que vem à cabeça quando se fala no museu.

O que é compreensível, até porque foi um absurdo o que aconteceu.

Mas a história desse prédio tem uns esqueletos no armário.

Tem muita coisa por trás.

Antes de virar um museu, esse palácio enorme era a casa de alguém.

A casa.

E é curioso pensar no conceito de casa, porque o lugar onde a gente mora pode revelar muita

coisa sobre quem a gente é.

Se a casa é própria, se é alugada, se é perto da família ou é longe, mas é perto

do trabalho.

Se é grande, se é pequena, se é nova, se é mais antiga.

Tem casa que ajuda até a explicar a história de um país.

E é o caso dessa aqui.

O Palácio do Museu Nacional já foi residência oficial da família real, depois família

imperial do Brasil.

Sabe Dom João VI, Dom Pedro I, Dom Pedro II, Princesa Isabel?

O nome é Palácio de São Cristóvão.

É como se fosse hoje em dia o Palácio da Alvorada lá em Brasília.

Só que diferentemente do Alvorada, este palácio aqui não foi construído pra ser

a residência oficial do Dom João VI.

Já existia um prédio aqui.

Tinha sido construído por um comerciante bem rico, o Elias Antônio Lopes.

Daí quando a família real portuguesa veio pro Brasil, em 1808, era disparada a melhor

mansão do Rio e o Elias doou a casa e toda a Quinta da Boa Vista pro Dom João VI morar

com a família.

Bonzinho ele.

Mas como é que o Elias, um comerciante, juntou tanto dinheiro assim pra poder não só construir

a melhor mansão do Rio, mas também pra poder se dar ao luxo de doar ela, de abrir

mão dela?

É que ele não era qualquer comerciante.

Ele trabalhava com o bem mais valioso daquela época.

Não era café, não era açúcar, não era ouro, não era diamante.

O Elias era traficante de gente.

O Elias Antônio Lopes mandava um navio lá na costa do continente africano, embarcava

um monte de gente acorrentada, homens, mulheres, crianças, colocava todo mundo no porão desse

navio por semanas até meses de viagem e trazia pra vender por aqui.

E a família real aceitou essa doação.

Não se constrangeu nem um pouco de aceitar esse presente.

Assim, o tráfico nessa época era legal, era permitido por lei, mas não deixa de ser uma

coisa grotesca.

E o simbolismo desse gesto, de transformar em residência oficial uma casa construída

com o dinheiro do tráfico negreiro, dessa relação extremamente próxima entre um traficante

de escravos e a família real, o simbolismo disso, ajuda a explicar não só porque a

escravidão durou tanto tempo no Brasil, mas a própria independência do Brasil.

Ainda a explicar porque o Brasil é o Brasil.

Porque talvez não tenham te ensinado isso na escola, mas o Brasil nasceu da escravidão.

Foi a exploração do conhecimento e do trabalho, primeiro dos indígenas e depois dos africanos

e dos seus descendentes, que gerou toda a riqueza da colônia e depois do país.

Quando o Brasil ficou independente de Portugal, em 1822, já tinha muito país, nações europeias,

por exemplo, que já tinham lucrado bastante, tanto com a escravidão quanto com o tráfico,

que estavam discutindo e até aplicando o fim do comércio negreiro ou a abolição.

Mas o Brasil foi na outra direção.

As elites brasileiras não só reafirmaram o pacto com a exploração da mão de obra

escrava, elas dobraram a aposta.

A escravidão não ia só continuar, ia aumentar.

E também não é que não tinha uma escolha, uma outra possibilidade de Brasil.

Tinha várias, e daqui a pouco você vai ouvir sobre elas.

Foi por causa da escravidão e foi graças à escravidão que aquele aglomerado de províncias,

muito diferente uma da outra, decidiu se juntar e tentar formar um país, uma unidade.

Foi por causa da escravidão e do medo.

Este podcast e o projeto querino, apoiados pelo Instituto Ibiraputanga, são resultado

de um longo trabalho de pesquisa, viagens e de dezenas de entrevistas que começaram

ainda em 2020.

Um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil.

Uma história que talvez você ainda não ouviu, não leu, não viu.

Sem medo de botar o dedo na ferida das elites, de apontar o dedo pra quem escravizou e se

beneficiou disso.

Apontar responsabilidades.

Não há momento melhor pra fazer isso do que nos 200 anos da independência.

Eu sou o Tiago Rogero e este é o podcast do Projeto Querino, produzido pela Rádio Novelo.

Episódio 1, A Grande Aposta.

É muito interessante porque o Brasil reinace como um país, de fato, como um Estado-nação,

atrelado ao tráfico de africanos, porque esses agentes do tráfico estão diretamente

envolvidos e de maneira até bastante contundente na própria construção do Estado-nação.

De modo que a própria moradia do imperador tinha uma relação direta com o tráfico

e isso por si só é bastante emblemático.

Este é o Tiago Campos Pessoa, historiador e professor.

Ele é autor de um livro que vai ser central pra gente no próximo episódio, mas por enquanto

ele está explicando o que era um traficante de escravos naquela época.

Desde o fim do século XVIII, o Rio já era a província mais rica do Brasil e essa riqueza

vinha do tráfico.

E algo pra se ter em mente é que o tráfico não era um negócio de uma pessoa só, uma

história de um só vilão.

Era uma cadeia produtiva.

Era uma operação bastante complexa, tanto em termos operacionais, como em termos logísticos,

econômicos, financeiros.

Então quando a gente pensa no traficante de escravos, a gente tem que pensar numa cadeia

de atores e de mercadorias, de agências, que vão para muito além do próprio controle

desse traficante de escravos.

Dificilmente era feito por uma pessoa só.

Embora ainda fosse legal, o tráfico já começava a ser questionado.

No período colonial, a palavra tráfico tinha mais um sentido de...

Comércio em movimento.

Acontece que na virada do século XVIII para o século XIX, à medida em que o abolicionismo

que se inicia na Inglaterra, a ideia de ser traficante de escravos começa a mudar um

pouco, sobretudo por conta dessa condenação moral e política advinda desse amplo movimento

que se inicia na Inglaterra e se espraia pelo Ocidente.

Antes disso, a Inglaterra tinha lucrado muito com o tráfico de escravizados e com a escravidão.

Muito.

Mas a revolução industrial estava em curso e em 1807 o parlamento inglês decidiu pelo

fim do tráfico de escravizados para a Inglaterra e para as colônias britânicas.

Daí o que era produzido nessas colônias ficou mais caro do que os produtos de quem

ainda escravizava, como, por exemplo, as colônias de Portugal.

Aliás, faltou explicar porque a família real portuguesa veio parar numa dessas colônias.

Em 1789 teve início a Revolução Francesa.

Daí passam 10 anos, teve um golpe de Estado e colocaram um militar no poder, o Napoleão

Bonaparte.

Ele se proclamou imperador e começou um processo de expansão do Império francês.

A França invadiu Portugal e a família real veio fugida para o Brasil.

A Inglaterra, que também estava se defendendo da França, escoltou os portugueses.

O Dom João VI, nessa época, ainda era regente.

A rainha era a mãe dele, a Dona Maria I, mas ela tinha sido declarada mentalmente incapaz

uns 15 anos antes.

E aí, em contrapartida pela ajuda dos ingleses, o Dom João decretou a abertura dos portos.

Os comerciantes brasileiros poderiam fazer negócios com outros países e não só com

Portugal.

E a Inglaterra, que era o principal parceiro comercial de Portugal e já há bastante tempo,

começou a pressionar o Dom João para acabar também com o tráfico.

Teve até um amigo brasileiro do Dom João, um advogado, que fez uma sugestão.

Que os filhos dos escravizados nascessem livres a partir daquele momento e que a escravidão

toda tivesse fim dali a 10 anos.

Isso foi em 1810.

Sabe o que o Dom João fez com esse conselho?

Nada.

O que ele assinou naquele ano, por pressão da Inglaterra, foi um tratado se comprometendo

a acabar com o tráfico de forma gradual.

Não dava prazo nenhum.

Só dizia gradual.

O Brasil vira um país independente nesse contexto, no qual a sua maior parceira política

é contrária ao tráfico.

Não só contrária, como organizou uma campanha para que esse tráfico, de fato, não se viabilizasse.

Esta é a Inaê Lopes dos Santos, historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense.

Ela também é a nossa consultora em história deste projeto e é autora do livro Racismo

Brasileiro, uma história da formação do país.

O Brasil era uma colônia ainda, quer dizer, não era uma colônia.

O Brasil era, fazia parte do Estado do Império Ultramarino, já como lugar de Estado.

A chegada da família real foi uma mudança de patamar para o Brasil.

Depois da abertura dos portos, a economia explodiu, principalmente no Rio e no Sudeste.

E o Brasil foi meio que promovido em 1815.

Deixou de ser só colônia e passou a ser um reino unido à Portugal.

Algo intermediário entre uma colônia e um Estado soberano.

Então era um lugar, politicamente, um tanto quanto dúbio.

Naquele mesmo ano, o Dom João assinou um novo tratado com a Inglaterra.

A partir daí, Portugal e o Brasil estavam proibidos de traficar pessoas que tinham sido

sequestradas acima da linha do Equador.

E tipo, tem uma parte enorme do continente africano que fica acima da linha do Equador.

Você acha que alguém cumpriu?

Na prática, o tráfico não acabou, mas aumentou.

Nos dez anos antes da chegada da família real, 30 mil escravizados foram desembarcados

por ano no Brasil.

Mas dez anos depois, subiu para 42 mil por ano.

Tinha mais gente sendo escravizada no Brasil, pouco mais de um milhão de pessoas, do que

a população inteira de Portugal.

A chegada da família real é também um momento em que se sublinha essa característica escravocrata

do Brasil, que tem como particularidade essa forte relação com o tráfico transatlântico,

e que esse tráfico era operado, em grande medida, por um número significativo de famílias

oligárquicas de diferentes partes do país, diferentes regiões do país, que tinham,

enfim, a sua riqueza vinculada ao tráfico.

As tropas francesas acabaram deixando Portugal, mas a família real continuou no Brasil.

A economia lá estava em frangalhos e os portugueses estavam reclamando que tinham virado colônia

do Brasil, que não parava de crescer.

Daí, em 1820, estourou em Portugal a Revolução Liberal do Porto.

Teve um golpe lá, com o apoio do exército, e decidiram transformar o reino de Portugal

numa monarquia constitucional.

Teriam uma constituição feita por parlamentares.

O Dom João, nessa época, já era rei, a mãe dele tinha morrido, e Portugal exigiu

que ele voltasse.

Em fevereiro de 21, ainda no Brasil, ele já teve que jurar lealdade à futura Constituição

portuguesa e nomeou um filho dele, o Pedro, de 22 anos, como príncipe regente do governo

provisório do reino do Brasil.

E o Dom João viajou para Lisboa levando todo o dinheiro que estava guardado no Banco do

Brasil, que tinha sido fundado quando ele chegou.

E começaram a discutir a nova Constituição lá em Portugal, com a participação de deputados

brasileiros.

A proposta que José Bonifácio ia fazer sobre a abolição é feita aqui, antes da Constituinte.

Ele vem com uma proposta, ele vem representando a junta governativa de São Paulo.

Esta é a historiadora e escritora Mery Delpriori.

Ela escreveu a biografia do patrono da independência do Brasil, o José Bonifácio.

Nessa época, o Bonifácio ainda não era deputado, mas estava trabalhando numa proposta

para a bancada de São Paulo apresentar.

O fim da escravidão.

Não uma abolição imediata, mas gradativa, para, segundo ele, não arruinar o comércio

e os agricultores.

Aí ele vai ter uma proposta de abolição que sequer é apresentada, sequer é ouvida.

Abolição em quatro anos, a coisa não vai para frente.

Nas Cortes...

Cortes era o nome que tinha essa Assembleia Constituinte lá em Portugal.

Nas Cortes, quem é muito, muito, muito atuante é o irmão dele, Antônio Carlos.

E Antônio Carlos está, nesse momento, nas Cortes, em Portugal, falando não de uma independência,

isso não estava claro, mas da autonomia das províncias brasileiras.

É o que se quer, é o que a elite deseja.

As elites locais querem cada qual se ocupar dos seus negócios sem interferência do Portugal.

As elites tinham medo, tinham pavor de perder tudo que elas tinham conquistado.

Todo o dinheiro, todos os cargos, todas as benesses.

Mas não era só disso que elas tinham medo.

Eu lembro da Revolução do Haiti, que vai ser também uma espécie de monstro em cima

dos grandes senhores de escravos e também dos traficantes de escravos que ganham fortunas

nessa época.

As elites morriam de medo de que houvesse aqui uma revolução como a do Haiti, que

tinha acontecido fazia pouco tempo e tão pertinho do Brasil.

Você sabe o que foi a Revolução do Haiti?

A Revolução do Haiti foi um acontecimento maior na história da humanidade.

Este é o Marco Morel, historiador e professor da Universidade do Estado do Rio.

Autor do livro A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista, o que não deve ser dito.

É que foi a primeira insurreição, a rebelião que se transformou em insurreição, que se

transformou em revolução de trabalhadores escravizados que conseguiu destruir a sociedade

escravista e, no caso, colonial, e chegar ao poder.

Isso é um fato único na história da humanidade.

Uma rebelião de escravos que consegue destruir a sociedade escravista e chegar ao poder.

Os escravizados se rebelaram, se libertaram e mataram os senhores.

Em segundo lugar, foi a segunda independência proclamada nas Américas.

A primeira foi os Estados Unidos e a segunda o Haiti.

Em terceiro lugar, e não menos importante, é porque foi o primeiro país das Américas

a abolir a escravatura, em 1793, 1994.

Então, por esse motivo e por representar o protagonismo da população negra e mulata

daquela sociedade, foram vitoriosos, no sentido de que naquele momento conseguiram criar novas

formas de relação social, etc.

Nas cortes, lá em Portugal, tinha gente argumentando que, uma vez independente, o Brasil enfrentaria

um levante negro e escravo.

E o clima só esquentava entre os deputados portugueses e os deputados brasileiros.

Os gajos queriam que o aparelho de Estado, ou falando em português muito claro, que

o dinheiro voltasse e ficasse todo concentrado em Lisboa.

E queriam também a volta do príncipe, do Pedro.

Já os brasileiros não aceitavam nada disso.

Exigiam um sistema de leis próprio, uma divisão mais justa dos impostos e a permanência do

príncipe.

E começou a circular por aqui que Portugal queria era recolonizar o Brasil.

Temos aí um inimigo comum, esse perigo é a recolonização, que não interessa aos

ingleses que já estão nadando de braçada em todos os contratos da abertura dos portos

e que os brasileiros também não querem ser reduzidos a cidadãos de segunda categoria.

Todos vão se unir em torno da ideia do império, do poderoso império, do medo da recolonização

e isso certamente vai projetar Bonifácio como conselheiro de Dom Pedro.

O Bonifácio, aquele mesmo que queria levar para as cortes uma proposta pelo fim da escravidão.

Ele é o grande conselheiro, mas ele enfrenta muita rejeição dos senhores de escravos,

dos comerciantes portugueses, dos fidalgos portugueses.

José Bonifácio era um político branco, tinha acabado de voltar de um período de

quase 40 anos estudando na Europa e trabalhando um pouquinho.

E lá ele acabou tendo contato com o abolicionismo inglês.

Mas no geral ele era um sujeito que até então nunca tinha tido muito destaque.

Ele ao contrário do que se diz não terá estudado com nenhum dos grandes professores

na França.

Ele se limita a ser um técnico de mineração.

Ele vai ser professor numa universidade que o detesta, ele é brasileiro, ele não tem

dinheiro, ele não tem prestígio, ele ganha um salário que é uma porcaria.

Só que quando ele voltou ao Brasil, acabou caindo nas graças do príncipe regente.

Ele vai cultivar a ideia em Dom Pedro de que é possível um poderoso império.

Ele recolhe assinaturas, 8 mil assinaturas, pedindo a Dom Pedro que fique.

O fico.

Em setembro de 21 tinha chegado um decreto das cortes ordenando o fim da regência e

o retorno imediato do príncipe a Portugal.

Mas o Pedro sabia que o pai dele, o Dom João, tinha virado um rei decorativo e o príncipe

decidiu ficar.

Ele demitiu todo o ministério que o pai dele tinha deixado e nomeou outro.

Seu braço direito era o Bonifácio, ministro dos negócios do reino e estrangeiros.

Pela primeira vez o cargo foi ocupado por um brasileiro.

Daí em 22 começou uma campanha interna para garantir a independência.

Especialmente uma que fosse hordeira, para não dar chance para os escravizados se revoltarem.

O governo e as elites queriam a todo custo evitar que o Brasil se dividisse, como aconteceu

com os nossos vizinhos da América do Sul, que tinha várias colônias, mas com todas

obedecendo ao mesmo rei.

Os ingleses só se referiam ao Brasil como Brazils, com S.

Brazils porque o Brasil era uma colcha de retalhos, me perguntam se não é até hoje.

Enfim, o Nordeste com um projeto, o Grande Norte com outro projeto, o Sul com outro projeto,

o Sudeste, Minas sempre em cima do muro.

Algo incomum entre as elites dessas diferentes partes do Brasil era a formação.

Os filhos eram enviados para estudar em Portugal, principalmente na Universidade de Coimbra.

Não dá para negar a importância dessa formação conjunta, desse compadrio estabelecido entre

eles.

Mas o que uniu essas províncias, esses espaços tão diferentes um do outro, foi a escravidão.

Ou melhor, o medo de perder a escravidão.

Por mais que os interesses e mesmo as culturas regionais fossem tão diferentes, era melhor

continuar embaixo de um governo central do que correr o risco de, com uma separação,

perder a principal fonte de renda, o trabalho escravo.

Porque era isso que estava acontecendo em parte dos países vizinhos, como a Argentina,

por exemplo, que já tinha uma abolição gradual desde 1813.

Fora o risco de uma guerra civil ou de uma revolta generalizada de escravizados, como

foi no Haiti.

O príncipe, então, começou a fazer umas viagens para conversar com esses grandes proprietários

e com os traficantes de escravizados.

A boa gente brasileira podia ficar tranquila.

Independência sim.

Fim da escravidão, não.

O Estado brasileiro surge a partir do compromisso com o comércio negreiro.

Aqui de novo o Tiago Campos Pessoa.

Esses traficantes eram parte desse compromisso do Estado brasileiro com a continuidade do

comércio negreiro.

Estruturaram, de certa forma, avalizaram a própria construção do Estado imperial.

Mas de certa forma, essa é a parte da história não contada.

O Pedro I, quando está construindo base social de apoio à ruptura com Portugal, ele justamente

vai buscar essa base social de apoio no Vale do Paraíba e nas suas minas gerais.

Justamente afiançando a continuidade da escravidão, a segurança da propriedade escrava.

E foi durante uma dessas viagens que chegou uma notícia bombástica lá de Portugal.

As cortes estavam planejando enviar tropas ao Brasil e estavam derrubando todas as nomeações

feitas pelo príncipe, entre elas a do Bonifácio.

O Bonifácio escreveu uma carta para o príncipe dizendo que ele tinha que agir rápido.

A única opção era romper definitivamente com Portugal.

A independência é uma dessas coisas que, se fechar os olhos, a gente consegue imaginar

a cena.

Tem um tanto de homem branco a cavalo às margens do rio Ipiranga.

E em destaque tá o Dom Pedro, com aquela barba esquisita, montado num cavalo, erguendo

a espada e gritando.

Um cenário super heróico.

A questão é que não foi bem assim.

O que a gente sabe é que foi um processo muito conturbado, muito pouco suntuoso.

Aqui de novo a Inaê Lopes dos Santos.

De certa forma, Dom Pedro I, que ainda não era Dom Pedro I, o príncipe regente, foi

um pouco pego de surpresa.

Tem uma coisa do simbolismo, que mesmo na precariedade das mulas, não tem aquela cavalaria,

aquela roupa pomposa, o cara tá voltando numa viagem de dias, Rio-São Paulo, que

demorava dois ou três dias.

E na volta dessa viagem, ele recebe uma carta, duas, uma da sua esposa e outra do Bonifácio,

dizendo que, na verdade, a esposa dele, que estava como regente, quem estava de fato governando

o Brasil naquele momento, era ela.

Ela já havia decretado a independência do Brasil.

E aí ele salta a espada.

Como Dom Pedro estava fazendo campanha pelo país e estava fora do Rio, a esposa dele,

a Maria Leopoldina, é quem estava como regente interina.

Daí quando chegaram aquelas notícias todas de Portugal, foi ela que declarou a independência.

O Dom Pedro só ratificou.

Essa imagem que a gente tem do 7 de setembro, esse mito, é por causa de um quadro.

O nome também é Independência ou Morte, foi pintado pelo Pedro Américo.

É uma pintura bem épica, tem esses elementos todos que eu já falei, só que ela foi feita

76 anos depois.

É de 1888.

Agora, não é porque o grito não foi aquilo tudo que não foi importante.

Aquele momento representou, sim, uma ruptura.

E representou também a vitória.

Ao menos de um grupo.

Eu gosto muito de reforçar o 7 de setembro porque ele é um momento em que você tem

um grupo muito específico e coeso.

E a coesão, o que une essas pessoas que estão definindo o futuro político dessa nova nação

é, em grande medida, o lugar de senhores descravizados.

Pensar esse momento como um momento de ruptura política, mas levando em consideração quem

são os agentes dessa ruptura e o que eles escolhem manter e por que eles escolhem manter

em meio a essas transformações.

E a escravidão, sem sombra de dúvida, é talvez a maior aposta e a maior manutenção

que foi feita.

E, de novo, uma manutenção que é feita no momento em que a possibilidade da escravidão

acabar também estava no horizonte de expectativas.

O Brasil podia ter seguido outros caminhos, tinha outras possibilidades de Brasil.

Mas a que venceu foi a dos senhores de escravos.

E não é que o Brasil seria, sei lá, progressista se decidisse acabar com a escravidão naquele

momento, ou pelo menos com o tráfico negreiro.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o tráfico pelo mar já estava proibido desde 1808.

Aqui as coisas pioraram.

Lembra que depois da chegada da família real, o volume de pessoas desembarcadas,

1. A grande aposta - Part 1 1. Die große Wette - Teil 1 1. The Big Bet - Part 1 1. La grande scommessa - Parte 1 1.大きな賭け - パート1

O que é isso, mané?

Ih, mané, esse fogo tá indo até lá em cima, mané.

Ih, vai apagar.

Olha isso, cara.

Já chegou muito carro de bombeiro, a guarda municipal já tá presente, e o fogo tá se

abastecendo muito rápido.

E atenção, uma notícia que acaba de chegar.

O incêndio de grandes proporções está destruindo, nesse momento, o Museu Nacional no Rio de

Janeiro.

Olha, a cena é muito triste.

A gente vê daqui todo o museu sendo destruído pelo fogo.

Esse incêndio começou por volta de umas sete e meia da noite.

Segundo a assessoria, existia um parque vigilante.

O incêndio no Museu Nacional foi numa madrugada de domingo pra segunda, em setembro de 2018.

Foram mais de seis horas de fogo e mais de 80% do acervo se perdeu.

Quase tudo que tava lá dentro.

A estrutura externa ficou, as paredes, a fachada.

E eu tô olhando pro prédio do museu agora, do lado de fora.

Fica na Quinta da Boa Vista, que é um parque em São Cristóvão, bairro da Zona Norte

do Rio de Janeiro.

Acho que esse dia do incêndio ainda tá muito vivo na mente das pessoas.

Pra quase todo mundo, talvez seja essa a imagem que vem à cabeça quando se fala no museu.

O que é compreensível, até porque foi um absurdo o que aconteceu.

Mas a história desse prédio tem uns esqueletos no armário.

Tem muita coisa por trás.

Antes de virar um museu, esse palácio enorme era a casa de alguém.

A casa.

E é curioso pensar no conceito de casa, porque o lugar onde a gente mora pode revelar muita

coisa sobre quem a gente é.

Se a casa é própria, se é alugada, se é perto da família ou é longe, mas é perto

do trabalho.

Se é grande, se é pequena, se é nova, se é mais antiga.

Tem casa que ajuda até a explicar a história de um país.

E é o caso dessa aqui.

O Palácio do Museu Nacional já foi residência oficial da família real, depois família

imperial do Brasil.

Sabe Dom João VI, Dom Pedro I, Dom Pedro II, Princesa Isabel?

O nome é Palácio de São Cristóvão.

É como se fosse hoje em dia o Palácio da Alvorada lá em Brasília.

Só que diferentemente do Alvorada, este palácio aqui não foi construído pra ser

a residência oficial do Dom João VI.

Já existia um prédio aqui.

Tinha sido construído por um comerciante bem rico, o Elias Antônio Lopes.

Daí quando a família real portuguesa veio pro Brasil, em 1808, era disparada a melhor

mansão do Rio e o Elias doou a casa e toda a Quinta da Boa Vista pro Dom João VI morar

com a família.

Bonzinho ele.

Mas como é que o Elias, um comerciante, juntou tanto dinheiro assim pra poder não só construir

a melhor mansão do Rio, mas também pra poder se dar ao luxo de doar ela, de abrir

mão dela?

É que ele não era qualquer comerciante.

Ele trabalhava com o bem mais valioso daquela época.

Não era café, não era açúcar, não era ouro, não era diamante.

O Elias era traficante de gente.

O Elias Antônio Lopes mandava um navio lá na costa do continente africano, embarcava

um monte de gente acorrentada, homens, mulheres, crianças, colocava todo mundo no porão desse

navio por semanas até meses de viagem e trazia pra vender por aqui.

E a família real aceitou essa doação.

Não se constrangeu nem um pouco de aceitar esse presente.

Assim, o tráfico nessa época era legal, era permitido por lei, mas não deixa de ser uma

coisa grotesca.

E o simbolismo desse gesto, de transformar em residência oficial uma casa construída

com o dinheiro do tráfico negreiro, dessa relação extremamente próxima entre um traficante

de escravos e a família real, o simbolismo disso, ajuda a explicar não só porque a

escravidão durou tanto tempo no Brasil, mas a própria independência do Brasil.

Ainda a explicar porque o Brasil é o Brasil.

Porque talvez não tenham te ensinado isso na escola, mas o Brasil nasceu da escravidão.

Foi a exploração do conhecimento e do trabalho, primeiro dos indígenas e depois dos africanos

e dos seus descendentes, que gerou toda a riqueza da colônia e depois do país.

Quando o Brasil ficou independente de Portugal, em 1822, já tinha muito país, nações europeias,

por exemplo, que já tinham lucrado bastante, tanto com a escravidão quanto com o tráfico,

que estavam discutindo e até aplicando o fim do comércio negreiro ou a abolição.

Mas o Brasil foi na outra direção.

As elites brasileiras não só reafirmaram o pacto com a exploração da mão de obra

escrava, elas dobraram a aposta.

A escravidão não ia só continuar, ia aumentar.

E também não é que não tinha uma escolha, uma outra possibilidade de Brasil.

Tinha várias, e daqui a pouco você vai ouvir sobre elas.

Foi por causa da escravidão e foi graças à escravidão que aquele aglomerado de províncias,

muito diferente uma da outra, decidiu se juntar e tentar formar um país, uma unidade.

Foi por causa da escravidão e do medo.

Este podcast e o projeto querino, apoiados pelo Instituto Ibiraputanga, são resultado

de um longo trabalho de pesquisa, viagens e de dezenas de entrevistas que começaram

ainda em 2020.

Um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil.

Uma história que talvez você ainda não ouviu, não leu, não viu.

Sem medo de botar o dedo na ferida das elites, de apontar o dedo pra quem escravizou e se

beneficiou disso.

Apontar responsabilidades.

Não há momento melhor pra fazer isso do que nos 200 anos da independência.

Eu sou o Tiago Rogero e este é o podcast do Projeto Querino, produzido pela Rádio Novelo.

Episódio 1, A Grande Aposta.

É muito interessante porque o Brasil reinace como um país, de fato, como um Estado-nação,

atrelado ao tráfico de africanos, porque esses agentes do tráfico estão diretamente

envolvidos e de maneira até bastante contundente na própria construção do Estado-nação.

De modo que a própria moradia do imperador tinha uma relação direta com o tráfico

e isso por si só é bastante emblemático.

Este é o Tiago Campos Pessoa, historiador e professor.

Ele é autor de um livro que vai ser central pra gente no próximo episódio, mas por enquanto

ele está explicando o que era um traficante de escravos naquela época.

Desde o fim do século XVIII, o Rio já era a província mais rica do Brasil e essa riqueza

vinha do tráfico.

E algo pra se ter em mente é que o tráfico não era um negócio de uma pessoa só, uma

história de um só vilão.

Era uma cadeia produtiva.

Era uma operação bastante complexa, tanto em termos operacionais, como em termos logísticos,

econômicos, financeiros.

Então quando a gente pensa no traficante de escravos, a gente tem que pensar numa cadeia

de atores e de mercadorias, de agências, que vão para muito além do próprio controle

desse traficante de escravos.

Dificilmente era feito por uma pessoa só.

Embora ainda fosse legal, o tráfico já começava a ser questionado.

No período colonial, a palavra tráfico tinha mais um sentido de...

Comércio em movimento.

Acontece que na virada do século XVIII para o século XIX, à medida em que o abolicionismo

que se inicia na Inglaterra, a ideia de ser traficante de escravos começa a mudar um

pouco, sobretudo por conta dessa condenação moral e política advinda desse amplo movimento

que se inicia na Inglaterra e se espraia pelo Ocidente.

Antes disso, a Inglaterra tinha lucrado muito com o tráfico de escravizados e com a escravidão.

Muito.

Mas a revolução industrial estava em curso e em 1807 o parlamento inglês decidiu pelo

fim do tráfico de escravizados para a Inglaterra e para as colônias britânicas.

Daí o que era produzido nessas colônias ficou mais caro do que os produtos de quem

ainda escravizava, como, por exemplo, as colônias de Portugal.

Aliás, faltou explicar porque a família real portuguesa veio parar numa dessas colônias.

Em 1789 teve início a Revolução Francesa.

Daí passam 10 anos, teve um golpe de Estado e colocaram um militar no poder, o Napoleão

Bonaparte.

Ele se proclamou imperador e começou um processo de expansão do Império francês.

A França invadiu Portugal e a família real veio fugida para o Brasil.

A Inglaterra, que também estava se defendendo da França, escoltou os portugueses.

O Dom João VI, nessa época, ainda era regente.

A rainha era a mãe dele, a Dona Maria I, mas ela tinha sido declarada mentalmente incapaz

uns 15 anos antes.

E aí, em contrapartida pela ajuda dos ingleses, o Dom João decretou a abertura dos portos.

Os comerciantes brasileiros poderiam fazer negócios com outros países e não só com

Portugal.

E a Inglaterra, que era o principal parceiro comercial de Portugal e já há bastante tempo,

começou a pressionar o Dom João para acabar também com o tráfico.

Teve até um amigo brasileiro do Dom João, um advogado, que fez uma sugestão.

Que os filhos dos escravizados nascessem livres a partir daquele momento e que a escravidão

toda tivesse fim dali a 10 anos.

Isso foi em 1810.

Sabe o que o Dom João fez com esse conselho?

Nada.

O que ele assinou naquele ano, por pressão da Inglaterra, foi um tratado se comprometendo

a acabar com o tráfico de forma gradual.

Não dava prazo nenhum.

Só dizia gradual.

O Brasil vira um país independente nesse contexto, no qual a sua maior parceira política

é contrária ao tráfico.

Não só contrária, como organizou uma campanha para que esse tráfico, de fato, não se viabilizasse.

Esta é a Inaê Lopes dos Santos, historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense.

Ela também é a nossa consultora em história deste projeto e é autora do livro Racismo

Brasileiro, uma história da formação do país.

O Brasil era uma colônia ainda, quer dizer, não era uma colônia.

O Brasil era, fazia parte do Estado do Império Ultramarino, já como lugar de Estado.

A chegada da família real foi uma mudança de patamar para o Brasil.

Depois da abertura dos portos, a economia explodiu, principalmente no Rio e no Sudeste.

E o Brasil foi meio que promovido em 1815.

Deixou de ser só colônia e passou a ser um reino unido à Portugal.

Algo intermediário entre uma colônia e um Estado soberano.

Então era um lugar, politicamente, um tanto quanto dúbio.

Naquele mesmo ano, o Dom João assinou um novo tratado com a Inglaterra.

A partir daí, Portugal e o Brasil estavam proibidos de traficar pessoas que tinham sido

sequestradas acima da linha do Equador.

E tipo, tem uma parte enorme do continente africano que fica acima da linha do Equador.

Você acha que alguém cumpriu?

Na prática, o tráfico não acabou, mas aumentou.

Nos dez anos antes da chegada da família real, 30 mil escravizados foram desembarcados

por ano no Brasil.

Mas dez anos depois, subiu para 42 mil por ano.

Tinha mais gente sendo escravizada no Brasil, pouco mais de um milhão de pessoas, do que

a população inteira de Portugal.

A chegada da família real é também um momento em que se sublinha essa característica escravocrata

do Brasil, que tem como particularidade essa forte relação com o tráfico transatlântico,

e que esse tráfico era operado, em grande medida, por um número significativo de famílias

oligárquicas de diferentes partes do país, diferentes regiões do país, que tinham,

enfim, a sua riqueza vinculada ao tráfico.

As tropas francesas acabaram deixando Portugal, mas a família real continuou no Brasil.

A economia lá estava em frangalhos e os portugueses estavam reclamando que tinham virado colônia

do Brasil, que não parava de crescer.

Daí, em 1820, estourou em Portugal a Revolução Liberal do Porto.

Teve um golpe lá, com o apoio do exército, e decidiram transformar o reino de Portugal

numa monarquia constitucional.

Teriam uma constituição feita por parlamentares.

O Dom João, nessa época, já era rei, a mãe dele tinha morrido, e Portugal exigiu

que ele voltasse.

Em fevereiro de 21, ainda no Brasil, ele já teve que jurar lealdade à futura Constituição

portuguesa e nomeou um filho dele, o Pedro, de 22 anos, como príncipe regente do governo

provisório do reino do Brasil.

E o Dom João viajou para Lisboa levando todo o dinheiro que estava guardado no Banco do

Brasil, que tinha sido fundado quando ele chegou.

E começaram a discutir a nova Constituição lá em Portugal, com a participação de deputados

brasileiros.

A proposta que José Bonifácio ia fazer sobre a abolição é feita aqui, antes da Constituinte.

Ele vem com uma proposta, ele vem representando a junta governativa de São Paulo.

Esta é a historiadora e escritora Mery Delpriori.

Ela escreveu a biografia do patrono da independência do Brasil, o José Bonifácio.

Nessa época, o Bonifácio ainda não era deputado, mas estava trabalhando numa proposta

para a bancada de São Paulo apresentar.

O fim da escravidão.

Não uma abolição imediata, mas gradativa, para, segundo ele, não arruinar o comércio

e os agricultores.

Aí ele vai ter uma proposta de abolição que sequer é apresentada, sequer é ouvida.

Abolição em quatro anos, a coisa não vai para frente.

Nas Cortes...

Cortes era o nome que tinha essa Assembleia Constituinte lá em Portugal.

Nas Cortes, quem é muito, muito, muito atuante é o irmão dele, Antônio Carlos.

E Antônio Carlos está, nesse momento, nas Cortes, em Portugal, falando não de uma independência,

isso não estava claro, mas da autonomia das províncias brasileiras.

É o que se quer, é o que a elite deseja.

As elites locais querem cada qual se ocupar dos seus negócios sem interferência do Portugal.

As elites tinham medo, tinham pavor de perder tudo que elas tinham conquistado.

Todo o dinheiro, todos os cargos, todas as benesses.

Mas não era só disso que elas tinham medo.

Eu lembro da Revolução do Haiti, que vai ser também uma espécie de monstro em cima

dos grandes senhores de escravos e também dos traficantes de escravos que ganham fortunas

nessa época.

As elites morriam de medo de que houvesse aqui uma revolução como a do Haiti, que

tinha acontecido fazia pouco tempo e tão pertinho do Brasil.

Você sabe o que foi a Revolução do Haiti?

A Revolução do Haiti foi um acontecimento maior na história da humanidade.

Este é o Marco Morel, historiador e professor da Universidade do Estado do Rio.

Autor do livro A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista, o que não deve ser dito.

É que foi a primeira insurreição, a rebelião que se transformou em insurreição, que se

transformou em revolução de trabalhadores escravizados que conseguiu destruir a sociedade

escravista e, no caso, colonial, e chegar ao poder.

Isso é um fato único na história da humanidade.

Uma rebelião de escravos que consegue destruir a sociedade escravista e chegar ao poder.

Os escravizados se rebelaram, se libertaram e mataram os senhores.

Em segundo lugar, foi a segunda independência proclamada nas Américas.

A primeira foi os Estados Unidos e a segunda o Haiti.

Em terceiro lugar, e não menos importante, é porque foi o primeiro país das Américas

a abolir a escravatura, em 1793, 1994.

Então, por esse motivo e por representar o protagonismo da população negra e mulata

daquela sociedade, foram vitoriosos, no sentido de que naquele momento conseguiram criar novas

formas de relação social, etc.

Nas cortes, lá em Portugal, tinha gente argumentando que, uma vez independente, o Brasil enfrentaria

um levante negro e escravo.

E o clima só esquentava entre os deputados portugueses e os deputados brasileiros.

Os gajos queriam que o aparelho de Estado, ou falando em português muito claro, que

o dinheiro voltasse e ficasse todo concentrado em Lisboa.

E queriam também a volta do príncipe, do Pedro.

Já os brasileiros não aceitavam nada disso.

Exigiam um sistema de leis próprio, uma divisão mais justa dos impostos e a permanência do

príncipe.

E começou a circular por aqui que Portugal queria era recolonizar o Brasil.

Temos aí um inimigo comum, esse perigo é a recolonização, que não interessa aos

ingleses que já estão nadando de braçada em todos os contratos da abertura dos portos

e que os brasileiros também não querem ser reduzidos a cidadãos de segunda categoria.

Todos vão se unir em torno da ideia do império, do poderoso império, do medo da recolonização

e isso certamente vai projetar Bonifácio como conselheiro de Dom Pedro.

O Bonifácio, aquele mesmo que queria levar para as cortes uma proposta pelo fim da escravidão.

Ele é o grande conselheiro, mas ele enfrenta muita rejeição dos senhores de escravos,

dos comerciantes portugueses, dos fidalgos portugueses.

José Bonifácio era um político branco, tinha acabado de voltar de um período de

quase 40 anos estudando na Europa e trabalhando um pouquinho.

E lá ele acabou tendo contato com o abolicionismo inglês.

Mas no geral ele era um sujeito que até então nunca tinha tido muito destaque.

Ele ao contrário do que se diz não terá estudado com nenhum dos grandes professores

na França.

Ele se limita a ser um técnico de mineração.

Ele vai ser professor numa universidade que o detesta, ele é brasileiro, ele não tem

dinheiro, ele não tem prestígio, ele ganha um salário que é uma porcaria.

Só que quando ele voltou ao Brasil, acabou caindo nas graças do príncipe regente.

Ele vai cultivar a ideia em Dom Pedro de que é possível um poderoso império.

Ele recolhe assinaturas, 8 mil assinaturas, pedindo a Dom Pedro que fique.

O fico.

Em setembro de 21 tinha chegado um decreto das cortes ordenando o fim da regência e

o retorno imediato do príncipe a Portugal.

Mas o Pedro sabia que o pai dele, o Dom João, tinha virado um rei decorativo e o príncipe

decidiu ficar.

Ele demitiu todo o ministério que o pai dele tinha deixado e nomeou outro.

Seu braço direito era o Bonifácio, ministro dos negócios do reino e estrangeiros.

Pela primeira vez o cargo foi ocupado por um brasileiro.

Daí em 22 começou uma campanha interna para garantir a independência.

Especialmente uma que fosse hordeira, para não dar chance para os escravizados se revoltarem.

O governo e as elites queriam a todo custo evitar que o Brasil se dividisse, como aconteceu

com os nossos vizinhos da América do Sul, que tinha várias colônias, mas com todas

obedecendo ao mesmo rei.

Os ingleses só se referiam ao Brasil como Brazils, com S.

Brazils porque o Brasil era uma colcha de retalhos, me perguntam se não é até hoje.

Enfim, o Nordeste com um projeto, o Grande Norte com outro projeto, o Sul com outro projeto,

o Sudeste, Minas sempre em cima do muro.

Algo incomum entre as elites dessas diferentes partes do Brasil era a formação.

Os filhos eram enviados para estudar em Portugal, principalmente na Universidade de Coimbra.

Não dá para negar a importância dessa formação conjunta, desse compadrio estabelecido entre

eles.

Mas o que uniu essas províncias, esses espaços tão diferentes um do outro, foi a escravidão.

Ou melhor, o medo de perder a escravidão.

Por mais que os interesses e mesmo as culturas regionais fossem tão diferentes, era melhor

continuar embaixo de um governo central do que correr o risco de, com uma separação,

perder a principal fonte de renda, o trabalho escravo.

Porque era isso que estava acontecendo em parte dos países vizinhos, como a Argentina,

por exemplo, que já tinha uma abolição gradual desde 1813.

Fora o risco de uma guerra civil ou de uma revolta generalizada de escravizados, como

foi no Haiti.

O príncipe, então, começou a fazer umas viagens para conversar com esses grandes proprietários

e com os traficantes de escravizados.

A boa gente brasileira podia ficar tranquila.

Independência sim.

Fim da escravidão, não.

O Estado brasileiro surge a partir do compromisso com o comércio negreiro.

Aqui de novo o Tiago Campos Pessoa.

Esses traficantes eram parte desse compromisso do Estado brasileiro com a continuidade do

comércio negreiro.

Estruturaram, de certa forma, avalizaram a própria construção do Estado imperial.

Mas de certa forma, essa é a parte da história não contada.

O Pedro I, quando está construindo base social de apoio à ruptura com Portugal, ele justamente

vai buscar essa base social de apoio no Vale do Paraíba e nas suas minas gerais.

Justamente afiançando a continuidade da escravidão, a segurança da propriedade escrava.

E foi durante uma dessas viagens que chegou uma notícia bombástica lá de Portugal.

As cortes estavam planejando enviar tropas ao Brasil e estavam derrubando todas as nomeações

feitas pelo príncipe, entre elas a do Bonifácio.

O Bonifácio escreveu uma carta para o príncipe dizendo que ele tinha que agir rápido.

A única opção era romper definitivamente com Portugal.

A independência é uma dessas coisas que, se fechar os olhos, a gente consegue imaginar

a cena.

Tem um tanto de homem branco a cavalo às margens do rio Ipiranga.

E em destaque tá o Dom Pedro, com aquela barba esquisita, montado num cavalo, erguendo

a espada e gritando.

Um cenário super heróico.

A questão é que não foi bem assim.

O que a gente sabe é que foi um processo muito conturbado, muito pouco suntuoso.

Aqui de novo a Inaê Lopes dos Santos.

De certa forma, Dom Pedro I, que ainda não era Dom Pedro I, o príncipe regente, foi

um pouco pego de surpresa.

Tem uma coisa do simbolismo, que mesmo na precariedade das mulas, não tem aquela cavalaria,

aquela roupa pomposa, o cara tá voltando numa viagem de dias, Rio-São Paulo, que

demorava dois ou três dias.

E na volta dessa viagem, ele recebe uma carta, duas, uma da sua esposa e outra do Bonifácio,

dizendo que, na verdade, a esposa dele, que estava como regente, quem estava de fato governando

o Brasil naquele momento, era ela.

Ela já havia decretado a independência do Brasil.

E aí ele salta a espada.

Como Dom Pedro estava fazendo campanha pelo país e estava fora do Rio, a esposa dele,

a Maria Leopoldina, é quem estava como regente interina.

Daí quando chegaram aquelas notícias todas de Portugal, foi ela que declarou a independência.

O Dom Pedro só ratificou.

Essa imagem que a gente tem do 7 de setembro, esse mito, é por causa de um quadro.

O nome também é Independência ou Morte, foi pintado pelo Pedro Américo.

É uma pintura bem épica, tem esses elementos todos que eu já falei, só que ela foi feita

76 anos depois.

É de 1888.

Agora, não é porque o grito não foi aquilo tudo que não foi importante.

Aquele momento representou, sim, uma ruptura.

E representou também a vitória.

Ao menos de um grupo.

Eu gosto muito de reforçar o 7 de setembro porque ele é um momento em que você tem

um grupo muito específico e coeso.

E a coesão, o que une essas pessoas que estão definindo o futuro político dessa nova nação

é, em grande medida, o lugar de senhores descravizados.

Pensar esse momento como um momento de ruptura política, mas levando em consideração quem

são os agentes dessa ruptura e o que eles escolhem manter e por que eles escolhem manter

em meio a essas transformações.

E a escravidão, sem sombra de dúvida, é talvez a maior aposta e a maior manutenção

que foi feita.

E, de novo, uma manutenção que é feita no momento em que a possibilidade da escravidão

acabar também estava no horizonte de expectativas.

O Brasil podia ter seguido outros caminhos, tinha outras possibilidades de Brasil.

Mas a que venceu foi a dos senhores de escravos.

E não é que o Brasil seria, sei lá, progressista se decidisse acabar com a escravidão naquele

momento, ou pelo menos com o tráfico negreiro.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o tráfico pelo mar já estava proibido desde 1808.

Aqui as coisas pioraram.

Lembra que depois da chegada da família real, o volume de pessoas desembarcadas,