Latim em pó: os caminhos da língua portuguesa [Estado da Arte] (2)
ele dava um exemplo ótimo, ele dizia se a gente teletransportasse
o Cícero, um escritor romano clássico, padrão de latim, elegante
para uma cidade brasileira de hoje, ele ia
primeiro ficar sem entender nada, ficar meio chocado.
Passado algum tempo, ele ia dizer “esse pessoal está falando um latim horroroso”.
Basicamente, o que a gente fala é um latim muito podre, um latim muito distorcido.
E isso, como você disse, mesmo a versão mais engravatada, mais séria do português
é nada mais, nada menos do que latim torcido, espremido, mastigado e cuspido.
É latim em pó.
É latim pulverizado a verdadeira massa dos falantes do latim
em qualquer período da história de Roma e do Império Romano, falava versões
erradas ou falava versões populares, atrapalhadas, estropiadas, mastigadas.
Foram essas pessoas que legaram o latim para as gerações futuras.
Isso pode parecer retórica, pode parecer um exercício mental,
mas a gente consegue provar isso muito facilmente.
Se você fizer detalhadamente as derivações das palavras românicas
até encontrar a raiz latina, você quase invariavelmente
não vai bater numa raiz que está no dicionário.
Você vai bater numa raiz torta, errada, desviada, que, no entanto,
você encontra nos documentos das pessoas com menos alfabetização você encontra
quando os dramaturgos escreviam uma comédia e queriam imitar
um personagem mal educado,
a gente sabe que esse latim ruim, entre muitas aspas, existia.
E a gente sabe que ele é a fonte do que a gente fala.
A gente e todo mundo que aprendeu alguma outra língua românica.
E se falamos em ancestralidade, qual seria a origem do próprio latim?
Há quem diga que ele tenha uma origem única e compartilhada
com o grego e até mesmo com o sânscrito.
Essas são questões que a linguística vem resolvendo progressivamente
e sendo capaz de dar voz a línguas já mortas e sem registros por escrito.
O DNA ancestral
de todos os idiomas do mundo
provavelmente é um só ou um conjunto de dialetos
muito próximos desenvolvidos lá na África subsariana, numa janela de tempo
que a gente não consegue determinar ainda muito bem.
A gente trabalha ainda com uma janela muito larga para essa origem da linguagem,
no caso das línguas europeias e do português, por exemplo,
essa história de que eu estava citando justamente a história da
hipótese dessa língua mãe, comum para vários idiomas europeus
e para vários idiomas de fora da Europa, como por exemplo, o persa,
o farsi antigo ou o sânscrito.
Como você mencionou.
Isso era um trabalho que vinha sendo desenvolvido por bastante gente,
mas que costuma ser simbolizado na história da linguística por essa
conferência de um juiz britânico na Índia, no final do século XVIII,
em que ele formaliza essa hipótese de que essas línguas, o latim, o grego,
o sânscrito e ele já levanta a bola, provavelmente as línguas célticas,
as línguas germânicas também façam parte dessa sacola,
e que essas línguas todas seriam inter-relacionadas
e que elas
derivariam de uma mesma língua que estava perdida.
Esse ancestral comum é essa língua que a gente chama de proto-indo-europeu.
A gente chama esse tronco de indo-europeu e o ancestral de protoindo-europeu
provavelmente era um idioma, um conjunto de dialetos
de um mesmo idioma, versões de um mesmo idioma que teria sido falado
no que seria hoje o território da Ucrânia
e que se espalhou posteriormente por essas duas regiões.
É uma história que eu acho linda.
É uma história que eu acho linda porque, sei lá, a história do progresso científico
num certo sentido, é sempre a história de descobrir uma técnica que me permita
conhecer uma coisa que antes dessa técnica era totalmente inacessível.
E a gente vê isso acontecer na linguística
no século XVIII, fundamentalmente,
quando as pessoas começam a perceber que é possível
e é para isso as línguas românicas,
as línguas derivadas do latim tiveram um papel muito importante,
porque elas são muito bem conhecidas, muito bem estudadas.
E o latim é uma língua muito conhecida, muito bem estudada.
Se eu começo, eu pego várias palavras de idiomas românicos diferentes,
que têm formas diferentes e comparo com a raiz latina
que originou essas palavras, eu começo a entender certas regularidades.
Eu começo a entender que o português faz isso.
O espanhol faz aquilo, italiano faz aquilo com este som, por exemplo,
com esse tipo de sílaba, com esse tipo de construção.
Mas o poder realmente dessa coisa vem quando você começa a usar esse sistema
ao contrário. E as pessoas começaram a fazer isso,
praticar muito esse método na linguística românica, inclusive,
mas começaram a levar isso
para famílias maiores e famílias que não tinham um ancestral conhecido.
E aí, de repente, a gente se viu sendo capaz de prever com alguma estabilidade,
formas linguísticas que desapareceram 5, 7 mil anos atrás,
antes de deixar marca na escrita, antes de deixar qualquer registro
que a gente pudesse acessar.
A gente desenvolveu uma ferramenta super poderosa de reconstruir
o que parecia impossível a fala de pessoas mortas,
milhares de anos antes do surgimento da escrita.
E isso permitiu reconstruir todo um passado de todo um tronco de línguas da Europa
e também
supor migrações, parentescos entre povos, ligações entre culturas.
Muito antes da arqueologia científica aparecer,
muito antes da genética aparecer.
A linguística conseguiu fazer isso
só com livros, ouvido, bom senso e muito trabalho.
Eu acho que isso eu acho um dos capítulos mais bonitos da história da linguística.
E vocês, o que acharam do passeio de hoje pelo nosso Brasil?
Pelos caminhos dessa língua portuguesa que é tua, que é minha, é nossa!
Diz aqui para a gente nos comentários.
O Estado da Arte vai ficando por aqui e até a próxima.