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História da Língua Portuguesa, Latim em pó: os caminhos da língua portuguesa [Estado da Arte] (1)

Latim em pó: os caminhos da língua portuguesa [Estado da Arte] (1)

O Estado da Arte de hoje

passeia por algo comum a todos os programas anteriores.

E isso acontece porque aquilo que falamos, lemos, escrevemos

e ouvimos também são fruto da nossa língua portuguesa que usamos no dia a dia.

E como o programa de hoje é uma homenagem

a essa companhia, às vezes discreta,

mas que faz questão de nos acompanhar em tudo o que fazemos.

Que tal dar uma olhada para os caminhos que a nossa língua portuguesa

tomou ao longo da história e que segue em movimento ainda hoje?

Então venham com a gente, porque agora começa a nossa viagem

pela formação do nosso português.

É, isso mesmo.

Se usamos a língua de uma determinada forma, é porque ela tem uma história,

uma construção social que segue os usos que nós fazemos dela.

E justamente para entender mais por onde passou o nosso português

e para que direções ele caminha é que contamos no programa de hoje

com a visita do Caetano Galindo, professor do Departamento de Literatura

e Linguística aqui da UFPR, e tradutor e escritor do livro

"Latim em Pó: um passeio pela formação do nosso português",

editado pela Companhia das Letras, que é um verdadeiro sucesso de vendas.

O Caetano será o nosso anfitrião e, na primeira pessoa,

vai nos mostrar como a linguística, que é a ciência da linguagem

e que se dedica ao estudo dos idiomas humanos, é capaz de mapear

e até mesmo de rastrear a origem exata das palavras que usamos todos os dias.

Mas, pra gente aquecer os motores, dá pra começar pelo título.

Por onde exatamente nós podemos achar o latim em pó?

O título foi a primeira coisa que apareceu.

Bom, ele vem da música do Caetano Veloso, que é uma música

que está na minha cabeça desde que ela apareceu.

A gente cresce com o Caetano Veloso,

com Chico Buarque, a gente cresce com uma coisa que já existia.

Mas essa música a minha geração viu aparecer.

E a gente viu o impacto que ela causou.

E ela ficou na minha cabeça durante décadas.

Na hora que eu sentei pra escrever esse livro, eu abri o documento

e a primeira coisa que eu escrevi foi o latim em pó.

E depois eu decidi o que ia acontecer a partir dali.

Também aqui pagando um tributo também, né?

Meu pai é baiano, e eu nasci em 73.

O disco Araçá Azul, que o Caetano lançou no começo de 73, está fazendo 50 anos agora.

Eu faço 50 anos em outubro e meu pai estava sob o impacto daquele disco maluco

e passou por cima de uma promessa que minha mãe tinha feito de dar o nome

do irmão pro filho e passou por cima do fato de que ele é um superfã

de Chico Buarque e acabou me chamando de Caetano por causa disso.

Então, pra mim, não deixa de ser uma espécie

de tributo.

O livro Latim em Pó também paga um tributo à nossa língua

portuguesa, aos seus usos e formas que, ao longo da história,

forjaram uma identidade única do português que é falado por aqui

e que tem grandes diferenças do português de Portugal

e das variantes faladas na África e na Ásia.

E um detalhe que chama atenção e como num país desse tamanho,

nós falamos basicamente uma língua uniforme,

ainda que com variações e sotaques, mas que falantes do Oiapoque ao Chuí

conseguem compartilhar sem maiores problemas.

Uma história que não deixa de ser marcada de percalços,

como acontece nos países de colonização como o Brasil.

O fato de o Brasil ser um país desse tamanho,

que fala basicamente um único idioma, e mais interessante ainda,

Um país em que quase todo mundo só fala este idioma

é uma exceção muito considerável

entre os grandes países do mundo e entre os países do mundo, ponto.

E a história de como ele se transformou nesse lugar

razoavelmente único.

É uma história cheia de percalços,

apesar dessa coisa linda de falarmos todos português, etc, etc.

Essa história não foi nada tranquila.

Durante bastante tempo do período de colonização do Brasil,

como eu costumo dizer para os alunos em sala de aula, se alguém viesse

para uma bolsa de apostas sobre o futuro linguístico desse país,

dessa então colônia, seria muito pouco provável que a pessoa

apostasse no futuro do português como a grande língua desse lugar.

Por trás dessa razoável uniformidade no português do Brasil,

vale dizer que durante o século XVIII até meados da primeira metade do século XIX

o país tinha pelo menos duas línguas gerais que funcionavam realmente

como as línguas francas em diferentes partes do território brasileiro.

Foram desenvolvidas aqui duas, ao menos duas línguas gerais,

que eram línguas desenvolvidas

a partir das línguas originárias brasileiras de línguas da família do Tupi.

Nos dois casos, uma no litoral de São Paulo e uma na região norte do país.

E essas línguas, durante muito tempo, foram as verdadeiras línguas brasileiras,

as línguas que a população daqui

usava, as línguas em que as crianças eram criadas quando aprendiam a falar,

isso se serviu ou isso decorreu também do fato

de que os casais inter-raciais mais comuns no período do Brasil Colônia

eram de mulheres indígenas e homens europeus.

E as mães é que têm um papel mais forte na criação dos filhos e ainda mais

naquele tipo de mundo e também na criação linguística dos filhos.

Isso acabou gerando uma situação em que, com o passar do tempo, parecia

surgir um futuro possível para essa colônia,

um lugar de bilinguismo, pelo menos com o português,

uma posição de língua oficial do Estado, língua de administração.

Mas essas línguas gerais na posição de língua real da população.

Digamos que o nosso português atendia na época

pelos nomes de Nheengatu e de língua geral paulista.

Uma razão de a gente não ver tanto falar disso é que a gente, eu,

você, foi criado e educado na parte Centro-Sul do Brasil.

Se você foi criado no norte do Brasil,

você estuda uma história do Brasil ligeiramente diferente.

Se você foi criado no Nordeste,

se você foi criado em Itaparica, você estuda coisas da história do Brasil

que a gente às vezes varre mais rápido para baixo do tapete.

Num certo sentido, nós somos a parte vitoriosa dessa equação

unificadora colonial paulista,

grosso modo, do Brasil.

O Nheengatu, o que veio a ser chamado posteriormente de Nheengatu,

que quer dizer língua boa em Tupi,

era uma dessas línguas gerais.

Era a língua geral do norte,

que teve grande trânsito em toda a colonização do Brasil na região Norte.

Especialmente nesse momento, como você falava,

em que a administração da colônia foi efetivamente dividida

entre dois vice reinos, dois estados diferentes,

e que continuou em uso muito vigorosamente

bem além do século XVIII. Enquanto a língua geral paulista

foi eliminada a partir de meados do século XVIII,

do Diretório dos Índios, das ações do Marquês de Pombal, por exemplo,

no Norte isso demorou muito mais a acontecer.

A demografia era mais rala, a penetração do aparato colonial era menor.

Aliás, o Norte ainda é em grande medida, um Brasil não penetrado e não descoberto.

E tomara que permaneça assim durante muito tempo.

O que aconteceu de demograficamente relevante lá

teve a ver com o ciclo da borracha.

Teve a ver com várias coisas,

mas teve bastante a ver com a repressão à revolta da Cabanagem.

Os cabanos que dão nome à revolta

eram gente do estrato menos favorecido da sociedade,

majoritariamente ou quase totalmente falantes de Nheengatu.

E essas pessoas foram absolutamente massacradas e chacinadas

em uma proporção absurda durante a repressão à revolta.

Isso alterou a demografia da região inteira.

Foi preciso importar brasileiros do Nordeste e de outras regiões

para refazer a população de uma região que tinha ficado praticamente despovoada.

E nesse processo, o efeito colateral foi a quase eliminação do Nheengatu.

Porque as pessoas que vieram agora eram pessoas

falantes de português, eram pessoas falantes desse português

africanizado, desse português assimilado pelos escravizados

e que chegaram trazendo esse novo patrimônio.

Bem, agora vai ficando um pouco mais claro e evidente

que o nosso português tem um DNA indígena e africano

que deixou marcas definitivas na forma como falamos hoje

e não apenas nas palavras que dão forma ao nosso vocabulário.

E aqui vale um mergulho numa herança muitas vezes apagada,

mas que é tão presente e comum em nosso cotidiano.

Africano, grosso modo, no português do Brasil,

você vai chegar a conclusão que existem muitas palavras, mas que essas palavras

são quase todas ligadas ao mundo específico dessas culturas.

São termos para a fauna e a flora nacional.

No caso das línguas indígenas brasileiras, são termos para os ritos afro

brasileiros, para o culto, para a religião, para a culinária.

No caso das línguas, especialmente do mundo iorubá, do mundo nagô, na Bahia.

Mas você não tem uma penetração ao longo de todo o vocabulário da língua.

Nosso vocabulário é muito uniformemente europeu,

latino e derivado das mesmas fontes de que o vocabulário de Portugal.

No entanto, acontece uma

coisa curiosa que é que existem certas marcas

da estrutura do português brasileiro que a gente tem dificuldade para explicar.

E cada vez mais surgem possibilidades e hipóteses de explicação

para essas marcas que têm a ver com o aprendizado dessa língua

pelos indígenas ou pelos africanos.

Há coisas como, por exemplo, a prevalência do dito rótico retroflexo,

do R caipira, como se costuma dizer.

De onde surgiu esse R?

Porque ele existe justamente numa região do Brasil

que foi a região de prevalência da língua geral paulista.

O que está em jogo ali?

Esse R vem de uma língua indígena e vem de uma língua originária, vem do Tupi.

A hipótese mais, mais claramente estudada hoje.

Por que a gente tem esse essa tendência

a pronunciar sílabas que são compostas só de consoantes e vogal?

A gente não gosta de encontros consonantais. No Brasil.

A gente tem problema para falar problema porque tem dois encontros consonantais

um do lado do outro.

A gente diz faze, come

e canta em vez de, fazer, comer e cantar.

E essas coisas todas batem com a estrutura silábica

de certa forma também o Tupi, mas batem com a estrutura silábica das línguas

do Umbundu e do Kimbundo, por exemplo, línguas de Angola que vieram

também para essa região do Brasil.

Então, a gente de repente começa a encontrar marcas

ou explicações para marcas do português brasileiro que vão muito além.

E, como não poderia deixar de ser, o português do Brasil,

assim como as demais línguas latinas, são uma resultante curiosa

de como outros povos falavam um latim diferente

daquele dos registros escritos em que novas línguas vão sempre nascendo

e se desenvolvendo em um determinado lugar, numa dada faixa de tempo.

A ideia de um idioma português, o francês, o uolofe e o navarro,

o que quer que seja, é uma abstração.

E é uma abstração que é congelada no tempo

e artificialmente separada no espaço.

Se você olha para a realidade, o português,

para ficar só no nosso exemplo, nunca pára de se modificar.

Ele é uma realidade em permanente alteração,

impossível de se captar numa realidade estática.

A gente finge que isso é possível na hora que a gente vai escrever uma gramática

e vai fazer um comentário sobre a língua.

E se você olha no espaço

o português brasileiro, por exemplo, o meu é diferente do teu,

o teu é diferente do dele, o nosso é diferente.

É uma pessoa a 100 km daqui, que dirá os 3000 km daqui.

É um conjunto de variedades.

O nosso latim ancestral é, na verdade, um latim estropiado.

Mesmo o português, na sua forma mais culta e engravatada, veio de um latim

já em pó, que era independente da sua variante oficial e escrita.

Essa ficha caiu para mim em 1993,

cursando Linguística 1 no curso de Letras,

quando o professor José Luiz Mercer, cuja cadeira eu hoje ocupo,


Latim em pó: os caminhos da língua portuguesa [Estado da Arte] (1) Latein im Staub: die Wege der portugiesischen Sprache [Stand der Technik] (1) Latin in dust: the paths of the Portuguese language [State of the Art] (1) Latín en polvo: los caminos de la lengua portuguesa [Estado de la cuestión] (1) Le latin en poussière : les chemins de la langue portugaise [État des lieux] (1) Łacina w pyle: ścieżki języka portugalskiego [aktualny stan wiedzy] (1)

O Estado da Arte de hoje

passeia por algo comum a todos os programas anteriores.

E isso acontece porque aquilo que falamos, lemos, escrevemos

e ouvimos também são fruto da nossa língua portuguesa que usamos no dia a dia.

E como o programa de hoje é uma homenagem

a essa companhia, às vezes discreta,

mas que faz questão de nos acompanhar em tudo o que fazemos.

Que tal dar uma olhada para os caminhos que a nossa língua portuguesa

tomou ao longo da história e que segue em movimento ainda hoje?

Então venham com a gente, porque agora começa a nossa viagem

pela formação do nosso português.

É, isso mesmo.

Se usamos a língua de uma determinada forma, é porque ela tem uma história,

uma construção social que segue os usos que nós fazemos dela.

E justamente para entender mais por onde passou o nosso português

e para que direções ele caminha é que contamos no programa de hoje

com a visita do Caetano Galindo, professor do Departamento de Literatura

e Linguística aqui da UFPR, e tradutor e escritor do livro

"Latim em Pó: um passeio pela formação do nosso português",

editado pela Companhia das Letras, que é um verdadeiro sucesso de vendas.

O Caetano será o nosso anfitrião e, na primeira pessoa,

vai nos mostrar como a linguística, que é a ciência da linguagem

e que se dedica ao estudo dos idiomas humanos, é capaz de mapear

e até mesmo de rastrear a origem exata das palavras que usamos todos os dias.

Mas, pra gente aquecer os motores, dá pra começar pelo título.

Por onde exatamente nós podemos achar o latim em pó?

O título foi a primeira coisa que apareceu.

Bom, ele vem da música do Caetano Veloso, que é uma música

que está na minha cabeça desde que ela apareceu.

A gente cresce com o Caetano Veloso,

com Chico Buarque, a gente cresce com uma coisa que já existia.

Mas essa música a minha geração viu aparecer.

E a gente viu o impacto que ela causou.

E ela ficou na minha cabeça durante décadas.

Na hora que eu sentei pra escrever esse livro, eu abri o documento

e a primeira coisa que eu escrevi foi o latim em pó.

E depois eu decidi o que ia acontecer a partir dali.

Também aqui pagando um tributo também, né?

Meu pai é baiano, e eu nasci em 73.

O disco Araçá Azul, que o Caetano lançou no começo de 73, está fazendo 50 anos agora.

Eu faço 50 anos em outubro e meu pai estava sob o impacto daquele disco maluco

e passou por cima de uma promessa que minha mãe tinha feito de dar o nome

do irmão pro filho e passou por cima do fato de que ele é um superfã

de Chico Buarque e acabou me chamando de Caetano por causa disso.

Então, pra mim, não deixa de ser uma espécie

de tributo.

O livro Latim em Pó também paga um tributo à nossa língua

portuguesa, aos seus usos e formas que, ao longo da história,

forjaram uma identidade única do português que é falado por aqui

e que tem grandes diferenças do português de Portugal

e das variantes faladas na África e na Ásia.

E um detalhe que chama atenção e como num país desse tamanho,

nós falamos basicamente uma língua uniforme,

ainda que com variações e sotaques, mas que falantes do Oiapoque ao Chuí

conseguem compartilhar sem maiores problemas.

Uma história que não deixa de ser marcada de percalços,

como acontece nos países de colonização como o Brasil.

O fato de o Brasil ser um país desse tamanho,

que fala basicamente um único idioma, e mais interessante ainda,

Um país em que quase todo mundo só fala este idioma

é uma exceção muito considerável

entre os grandes países do mundo e entre os países do mundo, ponto.

E a história de como ele se transformou nesse lugar

razoavelmente único.

É uma história cheia de percalços,

apesar dessa coisa linda de falarmos todos português, etc, etc.

Essa história não foi nada tranquila.

Durante bastante tempo do período de colonização do Brasil,

como eu costumo dizer para os alunos em sala de aula, se alguém viesse

para uma bolsa de apostas sobre o futuro linguístico desse país,

dessa então colônia, seria muito pouco provável que a pessoa

apostasse no futuro do português como a grande língua desse lugar.

Por trás dessa razoável uniformidade no português do Brasil,

vale dizer que durante o século XVIII até meados da primeira metade do século XIX

o país tinha pelo menos duas línguas gerais que funcionavam realmente

como as línguas francas em diferentes partes do território brasileiro.

Foram desenvolvidas aqui duas, ao menos duas línguas gerais,

que eram línguas desenvolvidas

a partir das línguas originárias brasileiras de línguas da família do Tupi.

Nos dois casos, uma no litoral de São Paulo e uma na região norte do país.

E essas línguas, durante muito tempo, foram as verdadeiras línguas brasileiras,

as línguas que a população daqui

usava, as línguas em que as crianças eram criadas quando aprendiam a falar,

isso se serviu ou isso decorreu também do fato

de que os casais inter-raciais mais comuns no período do Brasil Colônia

eram de mulheres indígenas e homens europeus.

E as mães é que têm um papel mais forte na criação dos filhos e ainda mais

naquele tipo de mundo e também na criação linguística dos filhos.

Isso acabou gerando uma situação em que, com o passar do tempo, parecia

surgir um futuro possível para essa colônia,

um lugar de bilinguismo, pelo menos com o português,

uma posição de língua oficial do Estado, língua de administração.

Mas essas línguas gerais na posição de língua real da população.

Digamos que o nosso português atendia na época

pelos nomes de Nheengatu e de língua geral paulista.

Uma razão de a gente não ver tanto falar disso é que a gente, eu,

você, foi criado e educado na parte Centro-Sul do Brasil.

Se você foi criado no norte do Brasil,

você estuda uma história do Brasil ligeiramente diferente.

Se você foi criado no Nordeste,

se você foi criado em Itaparica, você estuda coisas da história do Brasil

que a gente às vezes varre mais rápido para baixo do tapete.

Num certo sentido, nós somos a parte vitoriosa dessa equação

unificadora colonial paulista,

grosso modo, do Brasil.

O Nheengatu, o que veio a ser chamado posteriormente de Nheengatu,

que quer dizer língua boa em Tupi,

era uma dessas línguas gerais.

Era a língua geral do norte,

que teve grande trânsito em toda a colonização do Brasil na região Norte.

Especialmente nesse momento, como você falava,

em que a administração da colônia foi efetivamente dividida

entre dois vice reinos, dois estados diferentes,

e que continuou em uso muito vigorosamente

bem além do século XVIII. Enquanto a língua geral paulista

foi eliminada a partir de meados do século XVIII,

do Diretório dos Índios, das ações do Marquês de Pombal, por exemplo,

no Norte isso demorou muito mais a acontecer.

A demografia era mais rala, a penetração do aparato colonial era menor.

Aliás, o Norte ainda é em grande medida, um Brasil não penetrado e não descoberto.

E tomara que permaneça assim durante muito tempo.

O que aconteceu de demograficamente relevante lá

teve a ver com o ciclo da borracha.

Teve a ver com várias coisas,

mas teve bastante a ver com a repressão à revolta da Cabanagem.

Os cabanos que dão nome à revolta

eram gente do estrato menos favorecido da sociedade,

majoritariamente ou quase totalmente falantes de Nheengatu.

E essas pessoas foram absolutamente massacradas e chacinadas

em uma proporção absurda durante a repressão à revolta.

Isso alterou a demografia da região inteira.

Foi preciso importar brasileiros do Nordeste e de outras regiões

para refazer a população de uma região que tinha ficado praticamente despovoada.

E nesse processo, o efeito colateral foi a quase eliminação do Nheengatu.

Porque as pessoas que vieram agora eram pessoas

falantes de português, eram pessoas falantes desse português

africanizado, desse português assimilado pelos escravizados

e que chegaram trazendo esse novo patrimônio.

Bem, agora vai ficando um pouco mais claro e evidente

que o nosso português tem um DNA indígena e africano

que deixou marcas definitivas na forma como falamos hoje

e não apenas nas palavras que dão forma ao nosso vocabulário.

E aqui vale um mergulho numa herança muitas vezes apagada,

mas que é tão presente e comum em nosso cotidiano.

Africano, grosso modo, no português do Brasil,

você vai chegar a conclusão que existem muitas palavras, mas que essas palavras

são quase todas ligadas ao mundo específico dessas culturas.

São termos para a fauna e a flora nacional.

No caso das línguas indígenas brasileiras, são termos para os ritos afro

brasileiros, para o culto, para a religião, para a culinária.

No caso das línguas, especialmente do mundo iorubá, do mundo nagô, na Bahia.

Mas você não tem uma penetração ao longo de todo o vocabulário da língua.

Nosso vocabulário é muito uniformemente europeu,

latino e derivado das mesmas fontes de que o vocabulário de Portugal.

No entanto, acontece uma

coisa curiosa que é que existem certas marcas

da estrutura do português brasileiro que a gente tem dificuldade para explicar.

E cada vez mais surgem possibilidades e hipóteses de explicação

para essas marcas que têm a ver com o aprendizado dessa língua

pelos indígenas ou pelos africanos.

Há coisas como, por exemplo, a prevalência do dito rótico retroflexo,

do R caipira, como se costuma dizer.

De onde surgiu esse R?

Porque ele existe justamente numa região do Brasil

que foi a região de prevalência da língua geral paulista.

O que está em jogo ali?

Esse R vem de uma língua indígena e vem de uma língua originária, vem do Tupi.

A hipótese mais, mais claramente estudada hoje.

Por que a gente tem esse essa tendência

a pronunciar sílabas que são compostas só de consoantes e vogal?

A gente não gosta de encontros consonantais. No Brasil.

A gente tem problema para falar problema porque tem dois encontros consonantais

um do lado do outro.

A gente diz faze, come

e canta em vez de, fazer, comer e cantar.

E essas coisas todas batem com a estrutura silábica

de certa forma também o Tupi, mas batem com a estrutura silábica das línguas

do Umbundu e do Kimbundo, por exemplo, línguas de Angola que vieram

também para essa região do Brasil.

Então, a gente de repente começa a encontrar marcas

ou explicações para marcas do português brasileiro que vão muito além.

E, como não poderia deixar de ser, o português do Brasil,

assim como as demais línguas latinas, são uma resultante curiosa

de como outros povos falavam um latim diferente

daquele dos registros escritos em que novas línguas vão sempre nascendo

e se desenvolvendo em um determinado lugar, numa dada faixa de tempo.

A ideia de um idioma português, o francês, o uolofe e o navarro,

o que quer que seja, é uma abstração.

E é uma abstração que é congelada no tempo

e artificialmente separada no espaço.

Se você olha para a realidade, o português,

para ficar só no nosso exemplo, nunca pára de se modificar.

Ele é uma realidade em permanente alteração,

impossível de se captar numa realidade estática.

A gente finge que isso é possível na hora que a gente vai escrever uma gramática

e vai fazer um comentário sobre a língua.

E se você olha no espaço

o português brasileiro, por exemplo, o meu é diferente do teu,

o teu é diferente do dele, o nosso é diferente.

É uma pessoa a 100 km daqui, que dirá os 3000 km daqui.

É um conjunto de variedades.

O nosso latim ancestral é, na verdade, um latim estropiado.

Mesmo o português, na sua forma mais culta e engravatada, veio de um latim

já em pó, que era independente da sua variante oficial e escrita.

Essa ficha caiu para mim em 1993,

cursando Linguística 1 no curso de Letras,

quando o professor José Luiz Mercer, cuja cadeira eu hoje ocupo,